O guineense típico é bastante
complexado. Encerra complexidade em toda a sua mundividência e actuação. E
sabemos que, em última instância, complexos geram sempre preconceitos,
segregações, radicalizações, tribalismos, discriminações, rivalidades, ódios e conflitos entre
as pessoas. Discrimina-se na Guiné-Bissau pela origem, pela cor, pela etnia,
pelo nome, pelo sotaque, pela formação, pelo estatuto social, pela proveniência
e pela crença religiosa. Discrimina-se por tudo e por nada. Todos
discriminam-se e, ao mesmo tempo, todos são vítimas de discriminações (um
autêntico paradoxo!). E todas essas “fiu
manha” acabam indubitavelmente por arrastar a sociedade em geral,
prejudicando inutilmente inúmeros de inocentes, tal como temos vindo impotentemente
a assistir. A complexidade é uma realidade transversal no nosso país,
infelizmente. E para legitimar tais complexidades e preconceitos, com vista a
não ficarem meramente no domínio do abstrato, convencionou-se socialmente um
epíteto maniqueísta para qualificar os ditos “iskuadus” dos
putativos “punduntus”,
fazendo assim nitidamente a separação entre os privilegiados do sistema e os
prejudicados com ele.
A título exemplificativo, para atestar
a nossa afirmação, prende-se sobretudo com as termologias que se usam para dar
corpo aos referidos preconceitos generalizados, nomeadamente no que toca aos “civilizadus”
ku “djintius”, “pretus” ku burmedjus”, “raça fundinhu” ku “lopé”,
“marabus” ku “bibiduris”, “cristons” ku “muçulmanus”, “djintis
di praça” ku “djintis di ponta”, “quilis ku panhá pé” ku “quilis ku
ka panha pé”, etc. Todas essas formulações visam meramente perpectuar, de
forma deliberada e consciente, a discriminação entre os patrícios guineenses.
Por isso, a discriminação faz parte do cardápio identitário do povo guineense,
ganhando um amplo apoio na sociedade em geral, insistimos.
E mais, importa ainda salientar que
parte significativa das adjectivações que se usam para vincar as discriminações
não traduzem propriamente a verdade. São apenas pretextos falaciosos,
circunstanciais e momentâneos para favorecer os mais privilegiados em
detrimentos dos menos abonados. Desde logo, nem todos os que se arrogam ser de “praça” ou “civilizadus” o
são. Viver em bissauzinho não significa ser de Bissau. Da mesma sorte, ter
alguma formação, qualificação ou viver especialmente num país do Ocidente não
confere a ninguém o título honorífico de urbano. Há muitos mais elementos que
devem concorrer para habilitar mesmo uma pessoa a “fassi
praça” e concomitantemente ser “iskuadu”
ou “civilizadu”, que não se limitam apenas a uma mera
autoproclamação.
Acresce ainda ao facto de, por maioria
de razão, o erro que se comete de qualificar “djintis
burmedjus” de meios guineenses e os “pretus-nok” de
pura ascendência guineense não faz qualquer tipo de sentido. Este entendimento
é bastante redutor e completamente falso, sendo desprovido de sustentáculo
sociológico. É verdade que “djintis
burmedjus” têm progenitores, ascendentes ou parentes que miscigenaram
com outras raças, levando-os naturalmente a ser mestiços. É verdade
também que há muitos “pretus-nok” que
são produtos de misturas com outras nacionalidades, só que neste caso de origem
negra escura. E estas pessoas, em circunstância alguma, podem se achar-se mais
guineenses do que aqueles e vice-versa. Todos são guineenses. No entanto, há
preconceitos de ambos os lados, máxime complexos de
superioridade.
Por conseguinte, tais desconcertantes
baralhações de categorias igualmente se aplicam com “quilis
ku panhá pé” ku “quilis
ku ka panha pé”. Parte significativa dos guineenses pensam que “panha
pé” circunscreve-se apenas a ter noções exactas sobre a moda e
consequentemente vestir peças de marca, ter concubinas de “praça” ou
desposar com homens influentes dotados de grande poder financeiro e saber
dançar, inclusive “badju
di salon”, e ter posses. Quem não reúne minimamente estes requisitos
sociais é porque “ika
panha nan pé”, arriscando-se a ser objecto de chacota por parte dos amigos,
colegas e conhecidos. E muitos acabam por ceder ou procurar a todo o custo
ajustar a estes raciocínios ardilosos tão-somente para serem aceites
socialmente como pessoas que “panha
pé” ou “civilizadus”.
Por isso, em suma, não é de admirar o
conjunto de desencontros, discriminações, sofrimentos, dramas, males e cancros
em que a nossa sociedade guineense está mergulhada, o que, em parte, deve-se a
estes evitáveis complexos e preconceitos generalizados.