A Piroga Fantasma (5): Independência Dizimada


Celebra-se hoje em todo o território da Guiné-Bissau a data da independência nacional. Um feriado que assinala a desvinculação total do nosso país ao colonialismo português de cinco séculos, passando a ser considerado do ponto de vista internacional como um Estado soberano. Perante esta efeméride tão marcante na história do nosso povo importa fazer algumas reflexões oportunas sobre o estado deste nosso país ao longo destas quatro décadas de autodeterminação. 

A nossa abordagem incidirá principalmente sobre seis grandes áreas que consideramos ser extremamente estratégicas para o desenvolvimento sustentável da Guiné-Bissau, mas que no entanto não têm merecido uma atenção especial dos nossos sucessivos governantes; têm estas áreas sobretudo a ver com a Saúde, a Educação, a Justiça, a Segurança, a Economia e as Infra-estruturas. 

Antes disso, convém fazer sumariamente um breve historial da nossa Independência Nacional, que dividiremos em três determinantes fases: (I) A fase de Pós-Independência, que começa em 1974 e vai até 1980, tendo como o seu expoente máximo o ex-Presidente da República, Luís Cabral; (II) A fase do “Movimento Reajustador de 14 de Novembro”, que vai de 1980 a 1998, tendo como figura principal o falecido General João Bernardo Vieira (Nino), que por sua vez abrirá a Guiné-Bissau, mais tarde, em 1994, para uma “Democracia Participativa”, acabando assim aparentemente com o autoritarismo do partido único que outrora vigorava no país; e por fim, a (III) e última fase, que é a do “Ajustes de Contas”, que teve o  início com a guerra civil de 7 de Junho de 1998, liderado pelo então Brigadeiro Ansumane Mané ("Brick-Brack"), perpetuando até aos nossos dias e tendo como protagonistas as chefias militares. 

Não vamos estar agora a pormenorizar cada uma dessas fases. Queremos sim deixar a ideia geral de que todos estes períodos foram de grande declínio nacional, tanto do ponto de vista Político, Económico, como Social, e com repercussões preocupantes na vida dos guineenses, principalmente na camada da geração actual. Não se melhorou praticamente nada em concreto na vida do nosso povo com todos estes anos da dita independência; bem pelo contrário: o país mergulhou numa deriva política e impunidade sem precedentes, fazendo-nos experimentar recuos significativos a todos os níveis da governação. 

Desde o período da pós-independência a Guiné-Bissau continua a confrontar-se com graves problemas de fundo nas áreas supra mencionadas, fruto da reiterada irresponsabilidade e da incompetência dos sucessivos governos, que não souberam prosseguir com as políticas concretas para o desenvolvimento sustentável do país, limitando-se, única e exclusivamente, a servir os seus egocêntricos interesses sem se importarem com a miséria e o gritante sofrimento do povo. 

Vejamos, de uma forma sumária, a educação: a educação dos guineenses continua ainda muito aquém daquilo que deveria ser o seu ideal, principalmente em comparação com os outros países africanos, apresentando um número bastante elevado de índice de analfabetos em toda a camada populacional; desafio que já poderia ter sido superado há bastante tempo; mas, dada a cegueira política dos nossos líderes, a estas pessoas continua ainda a ser negada de forma deliberada um direito fundamental que lhes assiste. E só estamos a falar do ensino elementar (o 2º ciclo em Portugal), para não falar do agravamento generalizado da qualidade do ensino do país, que cada vez mais se acentua e com reflexos preocupantes nos conhecimentos dos nossos jovens, que mesmo assim conseguem dar volta à situação para acabar o curso e enfrentarem os desafios exigentes que uma profissão impõe. 

A nível de Saúde os problemas são ainda mais evidentes; basta pensarmos no nosso frágil e vicioso sistema de saúde que não passa de uma autêntica nulidade, somando-a com o total alheamento da intervenção do Estado na saúde pública. A título de exemplo: quantos guineenses continuam a perder vida nos nossos hospitais devido à escassez de recursos e condições dignas de trabalho para os médicos? Quantas mulheres grávidas morrem ainda hoje por falta de dinheiro para serem assistidas condignamente no momento do parto? Será que as nossas crianças dispõem de um acompanhamento sanitário? Quantos guineenses já foram objectos de descriminação devido a sua condição social pelo nosso corrupto sistema nacional de saúde que beneficia alguns em detrimentos dos outros (estamo-nos a referir concretamente à discricionariedade existente por parte da administração na atribuição da junta médica para o exterior, onde se cometem tremendas injustiças, principalmente para os doentes de camadas mais humildes que, infelizmente, acabam por morrer por causas dessas arbitrariedade)? 

A resposta a estas perguntas não podia ser mais do que negativa, e por razões várias. Acresce ainda o facto de ter vindo a crescer na Guiné-Bissau um número cada vez mais significativo de doenças infecto-contagiosas, nomeadamente o vírus de VIH, onde o governo não tem exercido correctamente o seu papel no zelo para com a saúde pública dos cidadãos perante esse flagelo ameaçador, que já dizimou, infelizmente, a vida de milhares de guineenses. 

Em relação à Justiça e Segurança juntamos estes dois pontos numa única abordagem porque entendemos que as duas realidades são completamente indissociável no contexto específico da Guiné-Bissau, isto é, só poderá haver uma justiça plena se houver uma eficiente segurança nacional, da mesma sorte só uma segurança a funcionar pode proporcionar uma Justiça plena. E tudo isto passa desde logo em garantir eficazmente a autonomia e protecção do poder judicial: apesar de a Constituição guineense contemplar “O Princípio da Separação de Poderes” e autonomia do poder judicial face a qualquer outro tipo de poderes de Estado, tem-se que, na realidade, nada disso se concretiza). Consideramos ainda essencial uma série de reestruturações no seio das forças armadas, a fim de garantir a estabilidade governativa, evitando assim eventuais golpes de estados que têm vindo a ser uma prática recorrente no país. 

De facto é inquietante a tamanha inoperância da Justiça e da Segurança Nacional na Guiné-Bissau. São dos sectores onde sistematicamente se viola a lei sem haver qualquer tipo de responsabilidade jurídico-civil e ou penal; de onde podemos salientar os obscuros processos de assassinatos de pessoas e altas figuras de Estado que jamais foram devidamente resolvidos ou esclarecidos pela nossa justiça, os sucessivos golpes de Estado sem qualquer tipo de fundamento, os desvios de fundos públicos, o narcotráfico envolvendo agentes do arco do poder, ao ponto da Guiné-Bissau ser apelidado no plano internacional como sendo um “narco-estado”. A impunidade sem precedentes, associada à corrupção a todos os níveis, abuso de poder, constantes violações de direitos fundamentais e atentado ao Estado de Direito Democrático, etc. Todos estes exemplos ilustram muito bem a falta de políticas consistentes nestas duas áreas: a Justiça e a Segurança Nacional do nosso país. 

Quanto à nossa economia ela não se distancia tanto das realidades de outros sectores mencionados. Continua ainda inteiramente dependente do exterior, como sempre foi. Não há nada que o Estado guineense queira fazer que não apelar à ajuda da Comunidade Internacional. O desenvolvimento económico-financeiro está muito aquém das expectativas, não obstante as condições naturais extremamente favoráveis que temos para o desenvolvimento da prática de agricultura e agro-pecuária; contudo nada destas boas oportunidades foram ou estão a ser aproveitadas pelas nossas autoridades. 

O Estado da Guiné-Bissau importa tudo o que consome, sem no entanto exportar absolutamente nada, com excepção das castanhas de caju. Passamos o tempo todo a depender de ajuda externa para sobrevivermos porque não sabemos aproveitar as riquezas e boas condições que temos no nosso país, e que felizmente muitos países do mundo desejariam ter como nós. Tudo isto para concluir que neste momento na Guiné-Bissau não se vislumbra nenhuma política credível para o crescimento económico do país. A economia continua estagnada há muito anos, o que por sua vez vai tendo reflexos enormes no nível da qualidade de vida dos cidadãos, mormente no que toca à esperança média de vida e num número bastante elevado da mortalidade, infantil e adulta (a Guiné-Bissau consta nos relatórios da Organização das Nações Unidas [ONU], como um dos países mais pobres do mundo e onde morrem mais crianças antes de completarem os cinco (5) anos de idade). Uma triste realidade, que é urgente alterar. 

Quanto às Infra-estruturas do país não precisamos alongar muito aqui. A Guiné-Bissau não dispõe de qualquer tipo de infra-estruturas. Não temos boas estradas (as poucas que tínhamos foram praticamente danificadas na guerra civil de 7 de Junho), nem sequer pontes, com a excepção da ponte de João Landim e de S. Vicente, situadas no norte do país, e que podemos considerar dignas desse nome. Do mesmo modo, não temos transportes públicos que visem satisfazer o interesse dos cidadãos; ou será porventura  a “toca-toca” ou “canter” dos particulares? Enfim, não possuímos absolutamente nada a nível de infra-estruturas. Uma vergonha nacional. 

Voltando novamente à realidade de 40 anos de independência falhada, somos completamente contra a opção armada que o PAIGC adoptou para fazer valer a nossa autodeterminação. Não obstante o vexame e a tortura que povo guineense passou perante o colonialismo português, mesmo assim, entendemos que a colonização já estava prestes acabar, tendo em conta as mudanças políticas que estavam em curso em Portugal, como mais tarde a realidade de 25 de Abril de 1974 acabou por confirmar. Se tivéssemos tomado a nossa independência de forma ordeira e pacífica como o fizeram alguns países africanos, talvez a nossa sorte tivesse sido outra. Não estaríamos hoje nos constantes ziguezagues em que estamos mergulhados. A nossa independência certamente seria muito bem acompanhada pelos portugueses, e todos nós, guineenses e português, sairíamos a ganhar com isso. 

Por tudo que ficou exposto, não temos motivos de orgulho da data de 24 de Setembro, pelas razões manifestamente acabadas de se invocar. E faz-nos imensa confusão quando vemos entusiasmo e alegria em muitos guineenses a festejarem a data, como se tal representasse uma mudança positiva na vida do nosso povo. E perguntamos a estas mesmas pessoas: será que há Paz em sentido pleno? Será que há Reconciliação e Liberdade na Guiné-Bissau? A Democracia Funciona? Os Guineenses já ultrapassaram o flagelo da Fome e de Mortalidade Infantil? Podemo-nos orgulhar do Sistema Nacional de Saúde e de Educação que temos? A Economia é sustentável para garantir melhor condição de vida as pessoas? A imagem da Guiné-Bissau melhorou perante a Comunidade Internacional sobre a insegurança do país e o ”narco-estado”, como ultimamente o mundo nos apelida? Quantos filhos guineenses que foram perseguidos, sem no entanto, poderem regressar livremente a Guiné-Bissau? Temos alguma coisa neste momento em que nos possamos orgulhar? Os ideais traçados por Amílcar Lopes Cabral na referida luta armada estão a ser prosseguidos? Tal como dizia um grande pensador, de facto "as más conversações pervertem os bons costumes". 

Esperamos que DEUS abençoe ricamente a nossa amada pátria, a Guiné-Bissau e todos os seus filhos, a contar com os que estão neste momento no interior do país, bem como os que estão espalhados por este mundo fora na busca de melhores condições de vida. Que de facto possa haver em sentido pleno: a Unidade, a Harmonia, a Paz, a Concórdia Nacional, o Progresso/Desenvolvimento e Bem-estar para todos os filhos da Guiné-Bissau. Que assim seja!