Vejo, caro
Cornelio Pulcher[1],
que elegeste a forma mais suave da administração do Estado, na qual, sendo
muito proveitoso para os assuntos públicos, mostras-te, em privado, muito
amável com todos os que lidam contigo. Porque é possível encontrar um país,
como se conta da Creta, sem animais selvagens, mas um Estado que não produza
inveja, ciúme ou rivalidade, as paixões que mais geram inimizade, até agora não
existiu (mas a verdade é que as nossas amizades nos enlaçam com inimizades […]).
Também
Platão, ao encontrar-se com homens que agiam torpemente, costumava perguntar a
si mesmo: «por acaso, serei igual a eles?». Todo aquele que censura a vida de
outro, e em seguida olha para a sua própria vida e a modifica, orientando-a e
corrigindo-a, retirará algum proveito da censura que, de contrário, parece ser,
e é, inútil e vazia. Por isso, a maioria das pessoas ri-se se um calvo ou um
corcunda censuram e troçam de outros pelas mesmas razões, e, em geral, é
risível censurar e troçar de qualquer coisa que pode devolver-lhe a censura.
Como Leão, o Bizantino, que tendo sido injuriado por um corcunda pela
enfermidade dos seus olhos, lhe disse: «Deitas-me em cara uma desgraça humana,
quando levas aos ombros a vingança divina». E também, não injurieis outro por
ser adúltero, se tu mesmo fores louco pelos jovens; nem por ser desregrado, se
tu mesmo és ruim: És da mesma estirpe da mulher que matou o marido, disse
Alcmeão a Adrasto. Que fazia aquele, na verdade? Não deitava em cara a injúria
de outro, mas a sua própria: E tu és o assassino da mãe que te gerou.
E Domicio[2]
disse a Craso[3]:
«Não choraste tu pela moreia[4]
que alimentavas no teu viveiro?». E Craso respondeu-lhe: «Não enterraste tu
três mulheres sem derramares uma única lágrima?». Não é necessário que aquele
que vai injuriar seja gracioso, de voz potente e audaz, deve, contudo, ser
irrepressível e inatacável. Pois, o conselho da divindade «conhece-te a ti
mesmo» parece aplicar-se sobretudo àquele que vai censurar outro, para que, ao
dizer o que quer, não vá escutar o que não quer. Certamente uma pessoa deste
tipo «quer», segundo Sófocles, Soltando a sua língua em vão, ouvir
involuntariamente aquelas palavras que diz voluntariamente”.
(Plutarco, in Como Tirar Proveito dos Inimigos, Coisas de Ler, Págs. 9,18,19,
Lisboa, 2008).
[1] Trata-se, provavelmente, do General Cornelio Pulcher, que foi procurador em Acaya até aos
últimos anos da vida de Plutarco e a quem o autor deseja dar uma série de
conselhos. CF. Carpus Inscr. Graec: 11186.
[2] General
Domício Aenobarbo, séculos II-I a.C., cônsul no ano 96 e censor no ano 92, com
L. Licinio Craso.
[3] Não se
trata do triúnviro, mas de seu tio.
[4] A moreia
de Craso era famosa. Plutarco fala dela em mais duas das suas obras.