A maneira mais fidedigna de aferir na íntegra os hábitos,
costumes e mundividências do povo americano é ler "Da Democracia na
América" de Alexis de Tocqueville. É uma colossal obra que dispensa
glosas. Nela o célebre autor reduzia a peculiaridade civilizacional do povo
americano, destacando todas as áreas subjacentes a uma sociedade moderna.
Aborda ainda os grandes pilares da Democracia
Participativa: O Direito, a Igualdade, a Liberdade, a Segurança, a Economia e o
Progresso. É um dos mais importantes livros alguma vez escritos sobre a Sociologia
dos EUA e um dos mais influentes a nível da Filosofia Política. Por isso propomos analisar as eleições americanas com base nele, fazendo
concomitantemente as devidas adaptações aos dias de hoje.
Desde já, antes de prosseguirmos com o nosso pensamento,
importa esclarecer que não estamos a apoiar nenhum dos candidatos. Se
porventura fôssemos americanos, por imperativo de consciência, votaríamos em
branco como oportunamente justificamos aqui em outras ocasiões (LER). Temos vindo a
acompanhar com particular atenção o processo de eleições para o próximo
Presidente dos EUA, máxime o aparente paradoxo que o mesmo encerra. O delirante
espectáculo político que os Republicanos e os Democratas estão a proporcionar
ao mundo é a manifestação visível do "espírito americano" na sua plenitude (LER).
Neste momento é bastante prematuro augurar o possível
vencedor das eleições. Numa leitura superficial e descuidada alguns
precipitar-se-ão em atribuir a vitória à Clinton, tendo em conta a sua posição
mais ou menos equilibrada, comparativamente com o seu adversário Trump, e
acrescentando o facto de ser a primeira mulher na história do país a concorrer
ao tão cobiçado cargo da República. No entanto, numa visão
tocquevilliana, o candidato Republicano parte com um ligeiro avanço face à Clinton,
dado que encarna melhor os valores do "America safe again" e "America great
again".
E mais, acresce ainda o facto de Trump defender no seu
programa eleitoral temas caros aos americanos e também controversos,
especialmente a questão da segurança interna, o mercado protecionista, a
política anti-imigração e a guerra aos radicais islâmicos. É um populista nato.
Fala coisas agradáveis aos ouvidos dos seus conterrâneos, que muitos pensam mas
que receiam dizer em público para não ferir susceptibilidades e serem politicamente incorrectos. Ora, Trump não teme este risco das coisas,
razão pela qual veicula vigorosamente o mote "America great again" para atrair
mais votos e assim consolidar o favoritismo perante o eleitorado. A Hillary,
diferentemente, não definiu uma estratégia clara na sua agenda política.
Limitou-se somente a contrariar a política funesta de Trump, aproveitando os
louros da administração Obama (bastante discutíveis).
Há ainda dois relevantes factores que jogam a seu desfavor:
por ter sido conotada com os fracassos políticos de Washington, D.C. nas
últimas décadas e ser uma mulher na corrida presidencial. Ali, através do
mandato do seu marido Bill Clinton e por ser braço-direito de Barack Obama,
sendo manifestamente imputados todos os aspectos menos bons das duas
administrações. Aqui, tão-simplesmente, por ser uma mulher. É isto mesmo – uma mulher.
Aquilo que poderia ser um triunfo inicial, para ela poderá vir a ser uma
autêntica pedra de tropeço. Isto porque os americanos, ao contrário dos outros
povos, têm um conceito particular da concretização do Princípio da Igualdade. E
como escrevia Tocqueville para ilustrar esta realidade: "A América é o país do
Mundo onde se teve o cuidado mais continuado de traçar para os dois sexos
linhas de acção nitidamente distintas, querendo-se que eles andassem
simultaneamente a par e por caminhos diferentes. Não se vê nenhuma americana a
dirigir os assuntos externos da família, ou à frente de uma actividade
comercial, ou agindo na esfera política, mas também não se encontra nenhuma
mulher que seja obrigada a dedicar-se aos duros trabalhos da agricultura ou aos
penosos labores que exigem o desenvolvimento da força física; e não existem
famílias tão pobres que sejam obrigadas a fazer excepção a esta regra" (in "Da
Democracia na América", p. 724, Principia, Estoril, 2007). Os homens e as
mulheres, nos EUA, há pelo menos um século atrás, desempenhavam funções distintas
uns dos outros, sem beliscar o Princípio da Igualdade na sua essência, na
óptica do autor.
É verdade que já não se nota assim tanto uma diferenciada
função entre os homens e as mulheres no mundo Ocidental. Houve, de facto,
significativos avanços a nível da mentalidade das pessoas e na legislação dos
países, minimizando assim as barreiras outrora existentes entre ambos os sexos,
inclusive nos EUA. No entanto, tal não quer dizer que não haja ainda certos
vestígios de preconceitos em relação à capacidade comprovada da mulher para
conduzir os destinos políticos de uma nação. Uma coisa é ela ter vindo a
desempenhar funções relevantes no aparelho do Estado e nas grandes empresas.
Outra coisa, e bem diferente, é ser-lhe conferida a oportunidade de ser
Presidente ou Primeira-ministra de um país. Neste campo, infelizmente, as
mulheres continuam ainda a ser manifestamente descriminadas e relegadas para
segundo plano por serem aquilo que são, não obstante algumas melhorias
verificadas no presente século. Nos EUA, fazendo fé nos relatos de Tocquiville
e também "no cadastro histórico" do país, ficam ainda bastante aquém na matéria
dos Direitos Humanos. São ainda, em abono da verdade, tendenciosamente
machistas.
A Hilary Clinton, do ponto de vista objectivo, tem tudo
para ser a próxima Presidente da República dos EUA. Além da inquestionável tarimba política que acumulou ao longo dos anos, conhece muito bem os
dossiers governativos, e está mais bem habilitada para ocupar a Casa Branca do
que propriamente o radical Trump. Só que, por vicissitudes várias, as coisas
não são assim tão lineares como aparentam. Ela para ganhar as eleições vai
depender de vários factores extra, sobretudo que Trump continue a cometer
constantes gafes, acentuação de cisão no seio do partido Republicano como
temos vindo a assistir (LER), que não haja persistentes convulsões entre a polícia e os afro-americanos e,
por fim, que não haja, igualmente, atentados nas vésperas das eleições no país ou em grande escala na Europa. São
estes importantes factores que vão garantir-lhe a eleição, caso contrário tal
será bastante difícil.
A Hillary Clinton se ganhar as eleições não é por ter um
programa de governo insigne, mas sim pelo demérito do seu adversário. Um homem
com uma ideologia política extremamente perigosa. Uma ameaça para o mundo, isto
é, se conseguir concretizar o seu maléfico intento, tal como tem veiculado.
Apesar dessas suas posições extremas e bastantes preocupantes, mesmo assim, têm tido um acolhimento favorável na sociedade Americana. Isto deve-se
ao facto dos americanos darem demasiada primazia aos pontos chave do seu
programa eleitoral, como supra destacamos. Extrai-se esta inequívoca conclusão
que acabamos de afirmar, no livro de Tocquiville e na enraizada mundividência
do povo Americano.
Vai correr muita tinta até as eleições do dia 8 de
Novembro. Não temos margem para duvidar disso. Tudo ainda pode acontecer. É
isto que faz os EUA o grande país que é e uma das maiores democracias do mundo.
Cabe tudo nele. Consegue conviver pacificamente com os paradoxos. E estas
eleições são uma autêntica manifestação dos antagonismos e da imprevisibilidade
do povo americano. Da nossa parte vamos aguardar serenamente o que o futuro
dirá daqui a três meses. De uma coisa temos absoluta certeza, e não hesitaremos
em afiançá-lo publicamente: os EUA jamais serão iguais com o próximo
Presidente da República – para o bem e para o mal.