«Não sei o que quero ou o que não quero. Deixei de saber querer, de saber
como se querer, de saber as emoções ou os pensamentos com que ordinariamente se
conhece que estamos querendo, ou querendo querer. Não sei quem sou ou o que
sou. Como alguém soterrado sob um muro que se desmoronasse, jazo sob a vacuidade
tombada do universo inteiro. E assim vou, na esteira de mim mesmo, até que a
noite entre e um pouco do afago de ser diferente ondule, como uma brisa, pelo
começo da minha inconsciência de mim. (…)
A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias, uma ironia
do Destino. Repugno a vida real como uma condenação; repugno o sonho como uma
libertação ignóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da vida real; e
vivo o mais intenso o mais constante do sonho. Sou como um
escravo que se embebeda à sesta – duas misérias em um corpo só. (…) E assim
arrasto, a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida,
absurda como um relógio público parado.»
(Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, Lisboa,
2012, p. 177, 178, 179).