O Que é o Amor?


«São Jerónimo defrontou-se com uma infinidade de tarefas espinhosas na tradução da Bíblia para o Latim, tal como os seus predecessores gregos se tinham debatido com o hebreu.
'ahab, hesed, raham, designando respectivamente desejo espontâneo, afeição misericordiosa e compaixão, podiam todos caber no conceito amplo do “eros” helénico; e no entanto a conotação libidinosa da acepção restrita levou os tradutores gregos a preferirem os muito mais obscuros e rebuscados “agapé” e “agapaó”, e no Novo Testamento ocasionalmente “philia”.
Em São Jerónimo “agapé” torna-se principalmente “caritas”, e menos frequentemente “dilectio”; e, manobrando subtilmente com a conotação mais carnal de “agapaó”, reserva-lhe o equivalente latino “cupiditas”, enfatizando na sua Vulgata, com intuito austeramente mortificador, que “radix malorum cupiditas est” (1ª Carta de São Paulo a Timóteo, 6:10).
E no entanto a polaridade era evitável, porque existia para ambos os sentidos uma palavra latina neutra, “amor” – uma palavra cuja neutralidade se converteu, às mãos dos doutrinadores cristãos, em ambiguidade.
Santo Agostinho esclarecê-lo-á logo de seguida, no seu De Doctrina Christiana (III.x.xv / xvi): o “amor” fica contingentemente dependente da intenção de quem ama, do objecto da sua afeição, pelo que será “caritas” se visa Deus em si mesmo ou nas criaturas, será “cupiditas” em tudo o resto.
Ao “Viator” medieval fica aberta a singela opção entre Jerusalém e Babilónia. São Tomás, séculos volvidos, reforçará a dicotomia através de uma subtil assimilação fonética entre “caritas” e “castitas” (Summa Theologiae, 2a-2ae.151.2).
Só muito mais tarde o romantismo procurará uma ímpia síntese do conceito de “amor”, propositadamente integrativa de “caritas” e “cupiditas”, com sacrifício da “castitas” (ou, se quisermos, com libertação do equívoco). Ímpia decerto por convenção, mas uma síntese mais próxima da indiferenciação semântica do original hebreu.
Sempre que pensamos no tema ressoam essas distantes tensões, esses motivos para a culpabilização, para a renúncia, para a frustração, a lembrarem-nos dos arbítrios e acasos de que a nossa cultura é feita.
Tudo culpa dos tradutores (LER).