Não consigo compreender onde é que estão as razões suficientes para a unânime indignação de toda a esquerda portuguesa sobre o discurso do senhor Presidente da República, a propósito do 25 de Abril (LER).
A meu ver, numa perspectiva geral, julgo que o Presidente da República fez um bom discurso, com excepção de alguns pontos menos certeiros e que acusam alguma falta de imparcialidade para com os partidos da governação, mas cuja relevância não é suficiente para que se possa considerar terem ofuscado o brilho e o alcance prático que o discurso visava atingir.
O Presidente centralizou a sua abordagem em cinco grandes questões: (1) a necessidade do governo concentrar o seu esforço no combate ao flagelo do desemprego; (2) o relançamento da economia (não se baseando única e exclusivamente nas medidas de austeridade) com vista a gerar novos empregos; (3) as receitas provenientes de medidas de austeridade que a União Europeia tem vindo a impor aos países com assistência financeira; (4) uma estratégia, a médio e a longo prazo, do Portugal pós-tróica; (5) e o inadiável consenso político que se espera dos agentes políticos nos dias que correm e nos próximos tempos que se avizinham, afastando assim, quaisquer eventuais cenários da crise política, uma vez que o país "não se pode dar ao luxo de juntar uma crise política à crise económica e social grave que o país atravessa”, afirmou peremptoriamente o Presidente.
Por isso, não me parece que o Presidente tenha feito “um discurso de facção que ofende os princípios da pluralidade e da democracia do 25 de Abril”, tal como sustenta convictamente o Bloco de Esquerda (BE); ou de o discurso parecer, de acordo com o Partido Comunista (PCP) “de Primeiro-ministro ou de um Primeiro-ministro adjunto”; e ainda, nas palavras dos Socialistas (PS), de considerar que a intervenção do Presidente é “claramente partidário de apadrinhar a política de austeridade do Governo”. Não subscrevo nenhuma destas afirmações. O Presidente fez o que dele se espera. Em primeiro lugar, fez um contexto geral da grave situação sociopolítica e económica que Portugal atravessa, enumerando os aspectos positivos e negativos do Governo. E aproveitou ocasião para desmarcar-se claramente da política cega de austeridade, chamando à razão aos partidos políticos para estarem à altura das suas responsabilidades, no sentido de darem inteira primazia aos superiores interesses do país, relegando assim os seus interesses para o segundo plano.
Partindo deste discurso, as reacções negativas dos partidos de esquerda e de alguns comentadores é de todo de rejeitar. O argumento do que “o povo é quem mais ordena”, como afirmam categoricamente a maioria das pessoas, e o desejo de eleições antecipadas, com fundamento de que a generalidade da população portuguesa já não se revê nas políticas deste Governo, e de que este já não tem a legitimidade requerida para continuar a governar, não me parecem plausíveis. Apesar de eu não ser propriamente pró este Governo (não tenho qualquer filiação partidária. Sou um apartidário com influências significativas da "Doutrina Social da Igreja"), convém lembrar que foi o povo que há dois anos atrás decidiu escolher o PSD para conduzir os destinos de Portugal.
E mais, é preciso ainda lembrar que nem sempre o povo tem razão. O povo nem sempre sabe o que quer. Cada vez mais convenço-me de que a verdade e a razão não reside na maioria, como é comummente entendido no nosso mundo pós-moderno do conceito da democracia. Obviamente que não abraço as concepções luteranas de um “estado de obediência”, em que o povo é obrigado a aceitar todas as disposições e imposições dos seus Governantes; sobretudo no entendimento que via no povo comum a manifestação visível da figura de Satanás, tal como o próprio Martinho Lutero sustenta, considerando que “antes quero um príncipe que não é justo do que o povo justo”. Não concordo com nada disto. O respeito pelas autoridades expressas nas passagens bíblicas de Provérbios 8:15-16; Daniel 2:21; Romanos 13:1-7) com base de que toda a autoridade se funda em Deus, foi muito mal acolhido e interpretado no pensamento de Martinho Lutero e nos demais Evangélico-Protestantes. Igualmente, não concordo com as teorias absolutistas de Maquiavel sobre “a razão do estado”, com propósitos bem definidos de legitimar qualquer tipo de actuação do príncipe, inclusive a crueldade contra o povo/os governados.
Ora, sobre o assunto em apreço, identifico-me mais com o pensamento de Alexis de Tocqueville, no sentido de que a maioria não tem sempre o direito de fazer tudo o que quiser. Ou seja, há limites inultrapassáveis e invioláveis para a vontade da maioria, contrariamente aos postulados defendidos por Rousseau no seu “Contrato Social”, usando a feliz expressão de um ilustre jurisprudente que “santificava a vontade da maioria, conferindo-lhe a natureza do poder absoluto”.
Apesar de eu ser um institucionalista, amigo da estabilidade governativa, também sou um homem democrata, razão pela qual não tenho nenhum preconceito ou medo quanto às crises políticas, muito menos de aceitar a vontade da maioria. A democracia, feliz ou infelizmente, é toda ela construída na vontade da maioria (embora, em determinados casos nem sempre tal corresponda à verdade) e geradora das crises políticas, de modo que não temos que diáboliza-la, desde que tudo se processe e desencadeie em conformidade com as regras da Constituição da República.
Existem várias formas para o Governo cair de acordo com a Constituição Portuguesa: (1) a dissolução da Assembleia da República por parte do Presidente da República nos termos do artigo 133, alínea d), observado o disposto do artº. 172. 1 da CRP), que consequentemente leva à queda do Governo; (2) a demissão do Governo por parte do Presidente da República quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado (art.º. 195.2 da CRP); (3) a moção de censura dos deputados ao Governo, atingindo a maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções (art.º 195.1 alínea f)); (4) a demissão do Primeiro-ministro, por entender que já não tem as condições necessárias para prosseguir com a governação; (5) a morte ou a impossibilidade física duradoura do Primeiro-Ministro; ou (6) a rejeição do programa do Governo e, por fim, a não aprovação por parte da Assembleia da República de uma moção de confiança ao Governo (art.º 195.1 alínea a), b), c), d), e), f) da CRP).
Nestes moldes sim, não me oponho a situações de crises políticas, dado serem mecanismos legítimos que a Constituição da República traça para haver uma crise governativa, traduzindo assim a vontade manifesta do povo português. Agora, uma crise política com base, única e exclusivamente, no pretexto de que o povo já não quer um determinado Governo, parece-me uma visão completamente limitada e distorcida do conceito da democracia, visto que o próprio povo tem os seus respectivos representantes, que ele elegeu, para fazer valer os seus direitos, bem como atender às suas reais petições quando assim for necessário.
Em última instância, cabe a estes referidos representantes, com legitimidade popular, decidir o que é melhor para o povo; caso contrário, se basearmos unicamente a nossa ideia de legitimidade nos protestos de rua, jamais conseguiremos ter uma Governação estável e duradoura, uma vez que o povo está sempre em constante revolta, muitas das vezes com bastante razão para tal, devido a falta de compromisso sério dos políticos para com as promessas eleitoras feitas antes de ganharem as eleições. Infelizmente o sistema não foi pensado nestes termos, tendo em conta os consideráveis agravantes que tudo isto criaria para o regular funcionamento do próprio sistema.
Agora, é claro que o Presidente da República cometeu um erro grave de facto no seu discurso, quando afirmou que alguns dos pressupostos do programa não se revelaram ajustados à evolução da realidade, imputando unicamente a responsabilidade à troika, e questionando se esta “não os deveria ter tido em conta mais cedo”. Certamente que a troika tem a cota parte de culpa com todo este turbilhão económico que o país atravessa. Todavia, o mais culpado desta situação foi o Governo. Sendo realista, este Governo aplicou doses a mais de austeridade do que aquilo que estava estipulado no memorando do entendimento assinado com a troika. Foi muito além na aplicação das medidas, não obstante os apelos constantes vindos de diferentes quadrantes da sociedade, apelando reiteradamente à contenção das medidas que estavam a ser aplicadas e chamando a atenção para os seus efeitos nocivos para a economia. Por todos, o ex Presidente da República Mário Soares, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa (LER) e o Professor Freitas de Amaral, levando o primeiro, inclusive a apelidar o Governo de ser mais “papista do que o próprio Papa”, porque "vai sempre mais longe do que a troika" (LER) e este último, acusando-o no mesmo sentido e, sobretudo, de fazer cortes cegos (LER).
E mais, é o Governo, em última instância, que tem a responsabilidade de zelar pelo equilíbrio financeiro do país; não é a troika. Foi ele que aplicou a maioria das receitas erradas que acabaram por ser um autêntico fracasso para o país. Descuidando este pormenor na sua intervenção, o Presidente da República acabou por fragilizar o seu discurso, transmitindo uma ideia de apoio e de parcialidade para com o Governo. Foi este talvez o ponto menos feliz do seu discurso.
Quanto ao resto, nada mais tenho a questionar. Agora uma coisa é certa: uma crise política neste momento em Portugal, não vai contribuir em nada para ajudar a minimizar o sofrimento dos portugueses; antes pelo contrário, agrava ainda mais a situação económico-financeira da população. Ou seja, a piorar esta crise política, o país cairia numa autêntica ingovernabilidade sem precedentes. Basta constatarmos as recentes sondagens que foram divulgadas para apercebermos de tal facto. Segundo as últimas sondagens (LER), se as eleições fossem hoje, o partido Socialista sairia como vencedor com 28% das intenções de votos; portanto, sem maioria absoluta. E levanta-se a seguinte questão: Com quem iria fazer a coligação para poder governar o país? Será porventura o Bloco de Esquerda (BE)? Julgo que não. O Partido Comunista (PCP)? Também acho que não. Será com o partido Social Democrata (PSD), criando assim, o tão desejado bloco central? A resposta é igualmente negativa. O partido que talvez poderá vir a aliar a coligação com o PS é o CDS/PP, uma vez que os primeiros dois partidos (PCP e o BE) recusaram desde o início assinar o acordo com a troika, por entender que o memorando em causa é “um pacto de agressão” contra os portugueses. A hipótese mais viável para o PS é um acordo de governação com o CDS/PP. E volto a perguntar mais uma vez: que proveito terá isto para Portugal? Será que vai haver uma mudança radical com as políticas de austeridade que estão a agora a ser implementadas? Ou este futuro governo, terá assim grandes manobras para inverter o rumo das coisas? São questões que eu deixo para a reflexão de cada leitor.
Da minha parte, só devo dizer que tenho muitas dúvidas e reticências na maioria destas perguntas levantadas. Por isso, reitero novamente o que disse logo no início do artigo: objectivamente o discurso do Presidente da República foi boa e realista com o quadro actual da situação do país, pelo que não compreendo o motivo de tanta indignação e de toda a celeuma criada em torno dele.