«Algures no perímetro da Praça Che Guevarra (Antiga Praça
Honório Barreto), em Bissau, terão os chefes autóctones pepéliss enterrado uma
canoa (ou, de acordo com alguns, um barco de ferro) simbolizando o não à campanha
de “pacificação” movida no início do séc. XX pelas forças coloniais, que
pretendiam aniquilar a resistência das tribos à sua dominação bem como alastrar
a sua sombra unificadora e redutora dos particularismos étnicos a todo o
território que lhe coube administrar: a Guiné-Portuguesa. Nesse barco teriam
sido enterrados vivos um rapaz novo e uma rapariga nova. Não é de hoje que se
vem falando desse misterioso barco, que encerraria as causas de todas as
derivas do país guineense. Não é de hoje, mas no início do 3.º milénio tais
alusões assumiram um tom desesperadamente omnipresente. Crê-se que a condição
incontornável para o país sair do lamaçal onde se meteu, ganhar alguma
perspectiva de desenvolvimento e conquistar definitivamente a paz e a irmandade
nacional é localizar o dito barco, desenterrá-lo e, através de operações de
natureza místico-transcendental, dar um outro ao destino ao barco e ao seu
conteúdo[1].
Esta parábola da Canoa enterrada potencia a alegorização do desnorte e
estagnação a que se entregou a terra guineense. Porque, sem canoa, a água está
ali, mas não podemos navegar e sair desta ilha para qualquer outra ilha; à
persistente frustração e impotência da falta de canoa, seguir-se-á a perda do
rumo já que o nosso horizonte experiencial cinge-se ao perímetro da ilha que
nos prende. A canoa é uma embarcação que nos transporta para algum lado, do
presente para o futuro. Ora, estando ela enterrada, estará igualmente estancado
o nosso horizonte espácio-temporal. Um futuro que se esgota no nosso presente e
um horizonte que não ultrapassa o chão que pisamos agora. Atente-se no tempo do
aludido enterramento e tente-se ler a mensagem subjacente: Fase da consagração
da colonização efectiva – quer isto dizer que antes havia reinos, Estados
nativos, na plena acepção do termo; depois, passaram a existir reinos
(regulados) sob o jugo de uma potência colonial europeia. Chamando um dia a sua
corte, proclamara a propósito o último rei dos Babok[2],
KATCHIPINDJI, antes da vitória dos portugueses na campanha militar de
“pacificação” de 1914/1915: Os brancos querem tomar o nosso chão, mas eu
KATCHIPINDJI, é que já não estarei cá quando isso acontecer. Os meus olhos não
farão quatro com os do branco. Essa atitude cortante transmite também, em meu
entender, o orgulho de um soberano que não admite sequer a hipótese de ser
reduzido a um soberano menor, com a sua soberania limitada por poder
estrangeiro ao sistema político mandjaku[3]
Regressando à canoa dos nossos desassossegos, a sua carga metafórica condensará
ainda a ideia de que a colonização de África por alguns países europeus é um ruído
que veio alterar o inter evolutivo da política e da sociedade africanas.»
(Relatado pelo Prof. Doutor Emílio Kafft Kosta, in Estado de Direito [O Paradigma Zero: Entre Lipoaspiração e Dispensabilidade], Pág. 169,170, 171, Almedina, Coimbra, 2007).
(Relatado pelo Prof. Doutor Emílio Kafft Kosta, in Estado de Direito [O Paradigma Zero: Entre Lipoaspiração e Dispensabilidade], Pág. 169,170, 171, Almedina, Coimbra, 2007).
[1] Em
entrevista à Rádio Bombolom, difundida no programa Ponto de Encontro, de
12.1.2002, um individuo que disse chamar-se Aladje ALIU DEMBA SANHÁ e ter 67
anos de idade, afiançou que aos 14 anos de idade viu o bote de ferro
(desenterrado) carregado de garrafas de nass (um líquido com propriedades
supostamente místicas).
Diz não ter visto corpos de quaisquer pessoas, mas viu
o dito cujo na seguinte posição: a proa localizava-se onde hoje está
implementado o antigo Hotel Portugal; a popa, no sítio onde se localizaria a
casa de um senhor que apelidou de BRITO PALMA.
O entrevistado havia ido com um amigo passear praça, quando
deparou com aquele espectáculo. O que se tinha passado resumia-se nisto: ao
fazer uma manobra, uma viatura bateu em algo. Quando se tentou averiguar qual a
natureza do obstáculo, deu-se com o barco de ferro. Consta, porém, que, mais
tarde, voltou-se a enterrar o barco pois a Administração colonial soube que se
não o fizesse os portugueses teriam de abandonar a Guiné, por força do mistério
albergado nesse barco.
Ofereceu-se o depoente para ajudar o governo a
localizar o referido barco, sugerindo que, em ordem a fazer sair o país da
situação de não-desenvolvimento e de desarmonia social, os grandes muruss
(marabus) e garandiss (anciões) pepeliss se juntem e – com fátias dos murus e
mistérios pepeliss dêem outro destino ao conteúdo desse barco.
[2] Esta
proclamação, positivada na tradição oral dos mandjakuss, foi-me nomeadamente
confirmado, numa entrevista a 14.4.2002, pelo Régulo Babok FERNANDO BATICÃ
FERREIRA (ou “BATHIKÁN”, de acordo com a grafia que eu reputo mais fidedigna).
Digo que foi o último rei dos Babok dados os
subsequentes encontrarem, naturalmente, a sua autoridade diminuída, tendo em
conta a presença, efectiva, da denominação colonial portuguesa, a partir dos
respectivos consulados.
[3]
Personagem que os balass não se cansam de elogiar nas cerimónias da terra:
«KATCHIPINDJI! Kak befeth, bababu tchok Babok. Bababu gar utchak n`dja. Auara
pedja na uithé! Utchak riindi tchoka» [KATCHIPINDJI! Volte, os brancos
estragaram Babok. Os brancos estragaram o nosso chão. Era bom que voltasse! A
nossa terra não teria sido estragada].