Que os guineenses são mitómanos na sua esmagadora maioria
não é surpresa para qualquer pessoa, que conheça bem a realidade viva do nosso
miscigenado povo. E levamos essa mitomania em tudo o que idealizamos e
concretizamos na prática. E aplicámo-la, ainda, de forma irracional, a qualquer
causa-efeito que acontece no mundo físico, procurando sempre justificá-lo com
base nessa enraizada crendice, resultante da nociva herança animista que recebemos dos
nossos antepassados. O guineense típico é todo ele formatado pelas concepções
supersticiosas, que por sua vez persegui-lo-ão para o resto da vida, e com
agravantes bastante preocupantes do ponto de vista social.
Vem este breve intróito a propósito da mítica história que
se conta na Guiné-Bissau de que a deriva política, e consequente instabilidade
político-governativa, que o país tem experimentado ao longo da sua
autodeterminação, deve-se somente à suposta piroga de ferro que os chefes
autóctones da etnia papel enterraram nos arredores de Bissau, juntamente com
dois jovens vivos: um rapaz e uma rapariga traduzindo assim o não à campanha de
"pacificação", levado a cabo pelas forças coloniais, no início do
século passado, com vista a efectivarem cabalmente a sua colonização na antiga
Guiné-Portuguesa. Lembro-me, perfeitamente, nos meus longínquos tempos de
criança, em Bissau, que ouvia pessoas mais velhas contarem efusivamente esta
lendária história.
A moral da ardilosa fábula é a seguinte: todo o sonho e o
destino colectivo do desenvolvimento sustentável da Guiné-Bissau estão encarcerados nesse enigmático barco. Por outras palavras, “esta parábola da canoa enterrada potencia a alegorização do desnorte e
estagnação a que se entregou a terra guineense. Porque, sem canoa, a água está
ali, mas não podemos navegar e sair desta ilha para qualquer outra ilha; à
persistente frustração e impotência da falta de canoa, seguir-se-á a perda do
rumo já que o nosso horizonte experiencial cinge-se ao perímetro da ilha que
nos prende. A canoa é uma embarcação que nos transporta para algum lado, do
presente para o futuro. Ora, estando ela enterrada, estará igualmente estancado
o nosso horizonte espácio-temporal. Um futuro que se esgota no nosso presente e
um horizonte que não ultrapassa o chão que pisamos agora[1].
E crê-se, ainda, segundo os relatos apurados e registados pelo Professor
Doutor Emílio Kafft Kosta no livro infra citado, que "a condição incontornável para o país sair do lamaçal onde se
meteu, ganhar alguma perspectiva de desenvolvimento e conquistar
definitivamente a paz e a irmandade nacional é localizar o dito barco,
desenterrá-lo e, através de operações de natureza místico-transcendental, dar
um outro destino ao barco e ao seu conteúdo”.
De acordo com esta fictícia narrativa (digo isto porque
não acredito minimamente nela, visto que não passa de um mito urbano construído
para ludibriar o bom senso do humilde povo guineense, diferentemente de muita
boa gente no país que dela faz afincadamente fé) as únicas pessoas habilitadas
para localizar o misterioso barco e fazer cessar a sua mensagem de anátema são
os anciãos pepelis e grandes muruss/marabus ("dunus di tchon"), dotados de
poderes mágicos e conhecedores profundos da trágica história. Caso contrário,
sentenciam os mitómanos, jamais a Guiné-Bissau alcançará a verdadeira Paz,
Harmonia Social e o Progresso nacional que o povo tanto almeja.
[1] Professor Emílio Kafft Kosta, in Estado de
Direito [O Paradigma Zero: Entre Lipoaspiração e Dispensabilidade], p. 169-170,
Almedina, Coimbra, 2007).