Como Tirar Proveito dos Inimigos, de Plutarco


«Assim, em primeiro lugar, parece-me que o mais prejudicial na amizade poderia converter-se no mais proveitoso para os que lhe prestam atenção. Que significa isto? O inimigo está sempre à espreita e a espiar as tuas coisas e procurando a ocasião por todas as partes, recorrendo sistematicamente à tua vida, não olhando apenas através azinheira como Linceu (Irmão de Idas e filho de Afareu. Participou na caçada da Caledónia e na expedição dos Argonautas, onde foi utilizado pela agudeza da sua visão. Conseguia ver, por exemplo, através de uma tábua de madeira), nem através de ladrilhos e pedras, também através do teu amigo, do teu servo e de todos os teus familiares, indagando naquilo que lhe for possível, o que fazes, e esquadrinhando e explorando as tuas decisões. Pois muitas vezes, por nosso desprendimento e negligência, não nos inteiramos de que os nossos amigos estão doentes e morrem, mas dos inimigos ocupamo-nos até dos seus sonhos. 

As enfermidades, os empréstimos e as diferenças com as mulheres passam mais despercebidas  àqueles a quem lhes diz o respeito do que ao inimigo. Está, sobretudo, atento aos erros e seguem as suas pegadas. Assim como os abutres são arrastados pelos odores dos corpos mortos, porém não captam os odores de corpos limpos e sãos, também as coisas doentias, más e dolorosas da vida atraem o inimigo, e contra estas se lançam, atacam e despedaçam os que nos odeiam. Será então isto proveitoso? Sem dúvida que sim, procurando viver com precaução e preocupando-se consigo mesmo, e tratando de não fazer nem dizer nada com indiferença irreflectidamente, mas mantendo sempre com muito cuidado, como num regime severo, uma vida irrepreensível. Pois o cuidado, que assim reduz as paixões e conserva a razão, produz um hábito e uma resolução de viver bem e irrepreensivelmente. E, assim como as cidades castigadas pelas lutas com os vizinhos e as despedições militares contínuas se contentaram com umas boas leis e um governo são, também os que são obrigados, por algumas inimizades, a manter uma vida sóbria e aguardar-se de serem negligentes e crédulos e agir com utilidade, sem se darem conta são levados pelo hábito a não cometer nenhuma falha e ordenar a sua conduta, por pouco que a razão os ajude. Pois tem sempre à mão o ditado: Certamente se alegrariam Príamo e os filhos de Príamo! Que os desvia afasta das coisas do que os seus inimigos se riem e alegram[1].». 



[1] Plutarco, in Como Tirar Proveito dos Inimigos, Coisas de Ler, p. 13,14,15, Lisboa, 2008.