“Pedi tão pouco à
vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo
próximo, um bocado de sossego com um bocado de pão, [o] não me pesar muito o
conhecer que existo, o não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim…
Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma,
mas para não ter que desabotoar o casaco. Escrevo, triste, no meu quarto
quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a
minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares
de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de
almas, submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à
esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência
dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa,
uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reacção contra mim
desce-me da inteligência…”
(Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, Lisboa,
2012, p. 44).