Um dos momentos mais sagazes do poeta latino do séc. I a. C.,
Ovídio, foi o de considerar de forma peremptória que o amor, como todas as
outras artes antropológicas, poderia ser ensinado às pessoas a desenvolver ao
longo da vida, independentemente de quaisquer condicionalismos circunstanciais
de cada indivíduo no contexto em que está inserido. Por isso, desdobrou-se num
esforço desmesurado para provar tão grande intento. Fê-lo através da sua
promiscua obra “Arte de Amar”; obra essa que se
circunscreve em facultar aos putativos amantes as ferramentas “indispensáveis” de
sedução, fetiche e conquista em última instância. Uma façanha apenas para
os “mestres de amor”, tal como o próprio presunçosamente se
autoproclamou.
Feito este brevíssimo introito, deixemos agora de lado Ovídio e
atentemos para o conceito terminológico do amor. Afinal de contas, o que é o
amor? E quais são os seus predicados axiológicos na vida dos amantes? O
amor, de forma subsumida, é uma força sobrenatural que visa aproximar e unir os
seres numa relação bastante especial. No grego bíblico, onde o termo
ganhou mais relevo e projecção mediática para as outras civilizações mundiais,
o amor envolvia três importantíssimos significados etimológicos que são “agapé”,
“philia” e “eros”, abarcando o círculo tridimensional do
Homem na sua esfera inter e extra-relacional com os seus semelhantes, bem como
com o Divino mediante a religião. As demonstrações do amor nestas três
vertentes da cultura helénica, máxime o amor “eros”[1], comportam
torrentes de sentimentos hipertrofiados que nos levam, muitas das vezes, a
perder a noção do juízo. Talvez seja por este motivo que exista um consenso
generalizado entre os seres humanos que o amor é irracional,
visto que “o coração tem as suas razões que a mente
desconhece”, sustentava Pascal na sua construção doutrinária sobre o amor. Que
razões indesvendáveis são essas que não são cognoscíveis? Serão, porventura, as
de amar e não ser amado? Eis as insondáveis questões que nos interpelam.
Deixemos agora de lado as concepções dogmáticas e atentemos na
realidade prática da alcova do amor, o centro nevrálgico de todas as emoções
humanas. Uma das características imprescindíveis e irrenunciáveis do amor
é o coração, tal como este simboliza na perfeição aquele. O coração não faz
sentido sem o sustentáculo do amor. E o amor não se realiza sem a estreita
colaboração do coração. Não há amor sem coração e, muito menos, o coração sem
amor. Perder o coração é deixar escapar irreversivelmente o amor e vice-versa.
São duas realidades visceralmente intrínsecas dentro do Homem, geradoras de
sentimentos indescritíveis e indomáveis ao ponto de abalar fortemente com toda
a nossa estrutura físico-emocional, deixando-nos sem autodomínio e à mercê da
deriva da paixão (que o diga, por todos, Propércio, Tibulo, Catulo, Virgílio e
tantas outras mulheres e homens que foram fortemente “dilacerados” pela
loucura do amor).
Deixemos agora de lado as formulações filosóficas e parábolas do
amor e atentemos na sua “causa efeito” nos corações dos comuns
mortais, mormente a razão última da sua existência. Uma das matrizes e
pressupostos valorativos do amor é a partilha. Não uma partilha adulterada,
baseada em meros caprichos individualistas, mas sim numa convivência sã,
fidedigna, incondicional e perpétua, envolvendo sempre a exequibilidade
sentimental que deixa marcas profundamente indeléveis na vida dos amantes. “Despedaçamos” a
metade do nosso sensível coração para juntá-lo com um outro coração “partido”, que
se identifica plenamente connosco, mediante o acasalamento e a consumação,
passando assim a formar apenas um só corpo e um único propósito de
vida. Uma completa e deliberada alienação que transcende a lógica
racional.
É justamente por tudo isto que o amor é uma submissão,
inconformismo, tortura, sofrimento, prisão e escravatura consentida por aqueles
que realmente amamos. Apesar de toda esta torrente de “erosão sentimental”, que
o amor acarreta e encerra na vida dos amantes, ele também é indubitavelmente
comunhão, protecção, partilha, beleza, doçura, afeição, arrebatamento, satisfação
e felicidade. Mistério, portanto, paradoxal.
[1] que será objecto de análise aqui.