Viver Para Contá-la (3)


Faz hoje um ano que não ingeri literalmente arroz. Um ano que deixei completamente de comer arroz. Um ano em que, por mera opção pessoal, renunciei deliberadamente ao cardápio do arroz na minha dieta alimentar. Não foi uma decisão impingida ou recomendada por questões de saúde, mas sim livre, esclarecida e unilateral. Deixei esclarecidamente de comer arroz, à semelhança de muitos alimentos, para assim reconciliar-me com o meu substrato de austeridade Cristã e, deste modo, reforçar ainda mais a comunhão com a abstinência (autocontrolo, bem entendido). 

Esta decisão não é de somenos para um guineense típico, tal como eu. O arroz está intrinsecamente ligado aos guineenses e os guineenses ao arroz. A nossa estrutura física e psicossomática está formatada com o arroz. Tudo aquilo que somos hoje deve-se ao arroz. A nossa essência identitária é o arroz. O arroz acompanha-nos do início da vida até ao seu fim. Comemos ininterruptamente o arroz desde tenra idade à idade adulta. Da mesma sorte, comemo-lo na festa e no infortúnio; na pobreza e na riqueza; na vida e na morte. O arroz está presente em todos os ciclos e solenidades do nosso povo. Os nossos pais, quando estamos doentes, é arroz que nos dão para recuperar e superar definitivamente a doença, que se vão desdobrando na típica ementa de “candjá”, “badagui”,“pitchi-patchi”, etc. O arroz, para os guineenses, a nível alimentar, representa tudo e é concomitantemente um cordão umbilical irrenunciável. Ora, a partir do momento em que abandonei o arroz na minha dieta alimentar, pode implicitamente ser entendido como renegar a “guineendadi” – e com a agravante ainda maior de eu ser da etnia pepel que tanto devota o arroz, considerando-o em última instância como antídoto para a robustez, a saúde, a beleza e bem-estar (LER)

E mais, esta decisão visa acima de tudo testar até que ponto vai a minha capacidade de abstinência e de autocontrolo. Felizmente, com a ajuda Divina, consegui superar-me na alimentação que eventualmente julgasse oportuna no futuro (o arroz é a comida mais importante para um guineense. E aqui aplica-se perfeitamente o argumento a fortiori: quem pode o mais, também pode o menos). Digo isto porque, em abono da verdade, não tinha nenhuma necessidade de enveredar por esta opção radical de deixar de comer arroz. O arroz não me faz mal, antes pelo contrário, aprecio imenso este fundamental cereal. Não me cria quaisquer transtornos ou desequilíbrios. Também não foi uma decisão motivada exclusivamente para perder peso, visto que há muito tempo que estou com o peso ideal. Foi meramente uma opção para testar, até ao limite, a minha capacidade de austeridade, de abnegação e abstinência. 

E mais, não sou e nunca fui um homem de descontrolo e de excessividade. Sempre fui comedido e moderado na minha forma de estar e encarar os desafios da vida. Considero-me um homem equilibrado e imune aos corrosivos vícios carnais, aliás orgulhosamente não tenho vícios, graças a DEUS. E esta decisão de abdicar de comer o arroz, e tantas outras apetitosas comezainas, veio apenas reforçar esta minha ideologia austero-Cristã (LER)

De há uns tempos para cá perdi o entusiasmo nos alimentos que tanto apreciava. Perdi vontade de estar reiteradamente a comer por tudo e por nada. Perdi o fervor pela vida hedonista e desafogada. Perdi significativamente a massa gorda no corpo e consequentemente diminuí o peso. Perdi as coisas que entendia dever perder para ganhar coisas maiores e melhores, razão pela qual ganhei ainda mais o despertamento de que tenho que viver para comer, e não comer para viver. Despertei-me da suma importância de que tenho que integrar a prática regular de exercício físico na minha rotina diária. Despertei-me igualmente para continuar a cultivar, cada vez mais, os hábitos sóbrios e vigilantes na minha vida, sobretudo a nível da prevenção. Se é verdade que “perdi” muitas coisas com esta postura de austeridade e abstinência, também é inquestionável verdade que ganhei muito mais do que aquilo que deliberadamente renunciei. Ganhei mais equilíbrio, mais qualidade de saúde e de vida. Tornei-me mais leve tanto do ponto de vista físico, mental e espiritual (a isto chama-se virtude). 

Sem mais delongas, em suma, pode ser por resignação, capitulação e conformação que eu venha um dia a voltar a comer a apreciada “bianda” dos guineenses. Mas, para já, sem qualquer tipo de hesitação, não quero liminarmente nada com o arroz.