Considerações Pascais: A Via Dolorosa para o Calvário IV


Nos artigos precedentes centralizamos apenas a nossa abordagem na suma importância de o Senhor Jesus ir a Jerusalém, bem como traçar a similitude dessa discernida decisão com a do patriarca Abraão na Teologia da Salvação. Agora, para uma melhor compreensão dos leitores, procuraremos abordar as implicações práticas da curta e complicadíssima estadia do Messias na Cidade Santa durante a “Semana da Paixão”, máxime pela forma como sofreu tamanha oposição dos pecadores (Hebreus 12:2-3), que culminou com a Sua humilhante e horrenda morte na Cruz do Calvário. O Senhor Jesus ao tomar o livre-arbítrio de ir a Jerusalém estava, sem dúvida, a perfilhar inteiramente com a Sua missão redentora em favor da Humanidade. E esta impreterível decisão envolveria, em última instância, a traição, a injustiça, a humilhação, a morte e a Sua ressurreição. Analisaremos infra, de forma sumária e sistemática, cada uma dessas deliberadas aleivosias cometidas contra o inofensivo Filho de DEUS. 

(I) A Traição. Começou, desde logo, com a multidão que rodeou o Senhor Jesus na Sua entrada triunfal no “Domingo de Ramos” na Cidade Santa, pedindo posteriormente a Pilatos para crucificá-Lo (Marcos 15:8-15). Uma tamanha incongruência comportamental sem precedentes. Embora não seja clarividente nas Escrituras Sagradas se é a mesma multidão. Há todavia um entendimento praticamente generalizado no seio dos biblistas no sentido que não é a mesma multidão que se revoltou contra Ele, sob o argumento que a turba que entrou com  o Senhor Jesus não era da cidade de Jerusalém, porque vinha das urbes circunvizinhas para onde Ele passou e seguiram-No até Jerusalém, tendo depois regressado às suas origens. O agora emérito Papa Bento XVI, por todos, defende esta posição no seu segundo volume “Jesus de Nazaré – Da Entrada em Jerusalém Até à Ressurreição”

Não comungamos deste entendimento preconizado pelos reputados teólogos. Temos uma leitura completamente diferente. É verdade que a multidão que entrou com o Senhor Jesus em Jerusalém era forasteira, acreditamos, contudo, piamente, que foi a mesma que dias antes O clamava devotamente: “hosana ao Filho de David! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas maiores alturas!” (Mateus 21:9-10) e subsequentemente mudaram de opinião, pedindo a Sua injusta crucificação. Não fazia qualquer sentido a caravana que entrou com o Senhor Jesus na Cidade Santa, percorrendo inúmeros quilómetros (alguns seguiram-No desde Jericó) para estar apenas um ou poucos dias em Jerusalém e logo a seguir regressar imediatamente às suas terras, sem ficar para celebrar a grande festa da páscoa judaica. Aliás, a maioria das pessoas estava precisamente ali por causa da referida efeméride que decorria naquela mesma altura do calendário. E não estamos a falar de uma mera celebração. É das mais importantes festas judaicas que atraía numerosos peregrinos a Jerusalém, tal como acontecera em algumas ocasiões com o Senhor Jesus e a Sua família – que tiveram de deslocar-se de Nazaré para ir assistir à aludida festividade (Lucas 2:41-52). Esperava-se, por parte desta multidão, o ardente desejo de aproveitar a oportunidade aí presente para comemorar a páscoa como é commumente prática judaica, hospedando-se em alguma parte da cidade. 

Acresce ainda o facto que, ao longo dos três anos volvidos no ministério evangelístico, o Senhor Jesus granjeou uma enorme simpatia e fama incontornável perante o povo – tanto na região da Judeia, Samaria e da Galileia, fazendo com que conquistasse uma grande popularidade nacional. E, justamente, por isso, havia diferentes entendimentos a Seu respeito, comparando-O com figuras proeminentes e bastante consensuais no panorama religioso de Israel, nomeadamente João Baptista, Elias, Jeremias ou um dos profetas antigos que havia ressuscitado (Mateus 16:13-16; Marcos 8:27-30 Lucas 9:18-20). Toda essa compreensão, que o povo tinha Dele, demonstrava a elevada estima e admiração que nutria por Ele. É evidente que o Senhor Jesus era mais importante em comparação com todas essas colossais figuras mencionadas. Ele é o Filho do Todo-Poderoso DEUS, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Salvador do mundo. E mais, esta fama popular contribuiu decisivamente para que Ele não fosse preso e morto prematuramente, tal como sempre desejaram os chefes dos sacerdotes e doutores da lei (João 7:30). Sabemos que isto nunca iria acontecer precocemente, uma vez que “a sua hora ainda não tinha chegado” (João 7:32:44). Com efeito, para gerir esse compasso de espera até chegar mesmo a Sua hora, foi preciso DEUS usar a multidão para “protege-Lo” provisoriamente da morte certa, razão pela qual Jesus gozou desta “imunidade temporária” até ao tempo limite da Sua passagem desta vida para o além (João 13:1). Se não fosse a multidão, há muito que O Senhor Jesus teria sido morto. Não há dúvida disso, porque ele não andava com guarda-costas e, tão pouco, armado. Havia, desde muito cedo, um plano bem traçado para tirá-Lo a vida, mas por causa da multidão ninguém teve coragem de deitar-Lhe a mão. Por isso, quando chegou a Sua hora de deixar este mundo, que coincidiu igualmente com “o poder das trevas” (Lucas 22:53; João 13:1), perdeu completamente a “legitimidade” que beneficiava no seio do povo e, em consequência disso, foi preso e condenado à morte (Lucas 22:53)

A chegada da hora do Senhor Jesus aconteceu concomitantemente com a manifestação visível do “poder das trevas”, tal como o próprio vai reconhecendo: “Vieram aqui com espadas e paus para me prenderem, com se eu fosse um ladrão? Estava convosco todos os dias no templo e não me prenderam! Mas esta é a vossa hora, é o poder das trevas” (Lucas 22:52-53). É este poder das trevas, que por sua vez, confundiu espiritualmente a multidão em Jerusalém e, mais tarde, os próprios discípulos. Começou a dar sinais com a cidade a ficar em “alvoroço” com a entrada triunfal do Senhor Jesus  (Mateus 21:10), curiosamente o mesmo termo “alvoroço” que havia em Jerusalém aquando do Seu nascimento em Belém de Judeia  (Mateus 2:3)  que, posteriormente, culminou com a matança das criancinhas inocentes por parte do rei Herodes para poder liquidá-Lo   (Mateus 2:16-18). Da mesma sorte, este último “alvoroço” resultou na predestinada morte do Filho do Homem. São os efeitos devastadores do referido “poder das trevas” que contagiou tudo e todos na cidade de Jerusalém, incluindo a mesma multidão que O aclamava dias antes e até mesmo os seus discípulos. 

Ainda em jeito de contra-argumento, para os Teólogos que têm uma leitura diferente da nossa sobre esta temática, importa salientar que o Senhor Jesus tinha muitos admiradores em Jerusalém, insistimos, apesar de nem todos eles considerarem-No o Messias. Mesmo assim, nutriam um enorme carinho e admiração por Ele (João 7:40-52). Eis a grande questão que se coloca: onde estariam, então, essas pessoas na hora da Sua condenação? Será, porventura, que todos os habitantes de Jerusalém eram contra Ele? Porque é que alguns não saíram à rua para defendê-Lo ou, pelo menos, tentar protegê-Lo da injustiça que estava a ser alvo? Não repara, caro leitor, que algo não bate certo aqui em termos da coerência argumentativa da posição que estamos a refutar? 

É verdade que nem todos em Jerusalém, como em outras cidades de Israel, gostavam do Senhor Jesus. Mas havia um número bastante significativo da multidão que O tinha como profeta e alguns deles como Messias. Foi por causa disso que Pilatos tentou arranjar uma alternativa escapatória para libertá-Lo, usando assim uma prerrogativa que não era comum naquele tempo, isto é, colocando o povo como juiz num famoso e controverso processo político-religioso. Terá pensando que com isso conseguiria salvar o Senhor Jesus da sentença capital de que traiçoeiramente estava a ser acusado pelas autoridades judaicas, uma vez que o marginal Barrabás jamais seria preferido pelo povo em comparação com o Santo Filho de DEUS. Presumia, de forma equivocada, o tirano governador romano. Debalde foram as suas “benévolas pretensões” para com o Messias (Mateus 27:15-26; Marcos 15:6-15; Lucas 23:13-25; João 18:38-40). Não resultaram e caíram completamente por terra. 

Estando a reinar “o poder das trevas”, por causa da chegada da hora do Filho do Homem (João 13:1; 17:1), conseguiu obnubilar completamente todos aqueles seguidores que aclamavam o Senhor Jesus na sua entrada triunfal em Jerusalém, razão pela qual não há que admirar a mudança repentina operada na multidão. Em certas ocasiões, a própria multidão intitulada nos Evangelhos de “seguidores”, teve esta postura redutora e antagónica sobre quem é o Senhor Jesus (João 6:47-58), chegando ao ponto de abandoná-Lo só porque demonstrava claramente quem realmente É (João 6:66). Por isso, não temos que ficar completamente surpreendidos com a momentânea mudança de posição da mesma multidão em Jerusalém. 

O impacto abismal desta manifestação do “poder das trevas” foi de tal ordem que afectou drasticamente a espiritualidade dos discípulos. A começar, desde logo, com a censura gananciosa que fizeram com a mulher que devotadamente ungiu o Senhor Jesus na casa de Simão, o “leproso”, em Betânia (Mateus 26:6-13; Marcos 14:3-9; João 12:1-8). E, ulteriormente, o sono anormal que se apoderou deles em Getsémani ao ponto de não conseguirem resistir apenas uma hora com o Senhor Jesus em oração, não obstante estarem predispostos espiritualmente, mas a carne estava bastante fraca (Mateus 26:40-46), somando o facto de abandonarem o seu Mestre aquando da Sua humilhante prisão (Mateus 26:56). Foi o mesmo “poder das trevas” que levou Judas Iscariotes a trair o Senhor Jesus, vendendo-O por trinta moedas de prata, apoderando-se definitivamente dele ao ponto de levá-lo ao suicídio (João 3:19; Mateus 26:14-16; 27:3-5; Lucas 22:53). Outrossim, foi efeitos do mesmo “poder das trevas” que levou o Apóstolo Pedro a negar o Senhor Jesus por três vezes (Mateus 26:69-75; Marcos 14:66-72; Lucas 22:55-62; João 18:15-18), bem como todos os discípulos a duvidar da Sua Ressurreição, mesmo estando a falar visivelmente com eles de carne e osso (Marcos 16:9-13; Lucas 24:10-49). 

Somente com a crucificação do Senhor na cruz que vislumbramos a manifestação visível deste “poder das trevas”. A Terra ficou literalmente escura desde a hora sexta até à hora nona (Mateus 27:45). Neste melancólico e sofrimento atroz, que o Filho de DEUS estava reduzido nas mãos dos ímpios pecadores, levou-Lhe a clamar em alta voz: “Eli, Eli, lamá sabactâni? O que quer dizer: Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?". Eis que, continua ainda o autor sagrado, na sequência dos acontecimentos que sucederam, “o véu do santuário se rasgou em duas partes de alto a baixo; tremeu a terra, fenderam-se as rochas; abriram-se os sepulcros depois, e muitos corpos de santos, que dormiam, ressuscitaram; e, saindo dos sepulcros depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos” (Mateus 27:46; 51-53). O Senhor Jesus lutou com os “principados e potestades”, vencendo-os com Seu impoluto testemunho de vida (Hebreus 12:2.3). 

“poder das trevas”, que confundiu tudo e todos com a chegada hora do Senhor Jesus, somente esvaneceu nos discípulos quando realmente “abriram os olhos” (Lucas 24:30-35; 45-49) e começaram a interiorizar melhor a verdade central das Escrituras Sagradas, que é a vitória do Messias sobre a morte. Naquele momento passaram a compreender, de forma clara e holística, que Ele é o Único Caminho para a Salvação de todo aquele que Nele crê (Actos 4:11-12). A partir daí foram definitivamente revestidos pelo poder do Espírito Santo (Actos 1:8) e o impacto imediato que tudo isto teve depois no testemunho miraculoso que deram na propagação do Evangelho pelo mundo inteiro. Que assim seja.