A Justiça dos homens nunca é perfeita nas suas várias configurações e dimensões antropológicas. Mesmo quando é hipoteticamente impoluta nunca é susceptível de gerar anuências holísticas por parte de terceiros. Na generalidade dos casos, tal como a experiência milenar tem indubitavelmente provado, ela é arbitrariamente forte com os fracos e fraco com os poderosos. Foi sempre assim desde os primórdios da Humanidade – tanto na sua tradição oral como quando está reduzida aos códigos. E este dilema, para infelicidade nossa, vai permanentemente continuar enquanto subsistirem as pessoas, as sociedades e os países.
A justiça num conceito latu sensu, nas suas várias modalidades, como sabiamente formulado pelos reputados teólogos, jurisprudentes, publicistas, politólogos, sociólogos e filósofos ao longo dos séculos, significa “dar a cada um o que merece”. Ela desempenha um papel preponderante e amiúde determinante na consolidação do Estado de Direito, uma vez que as duas realidades são concomitantemente intrínsecas e indissociáveis uma da outra. Por isso, tendo em atenção esta manifesta e inequívoca verdade jurídica, John Rawls na sua célebre obra “Uma Teoria da Justiça” vai ao ponto de considerar que “cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a qual nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um todo poderá ser eliminada. Por esta razão, a justiça impede que a perda da liberdade para alguns seja justificada pelo facto de outros passarem a partilhar um bem maior. (…) Assim sendo, numa sociedade justa a igualdade de liberdade e direitos entre os cidadãos é considerada como definitiva; os direitos garantidos pela justiça não estão dependentes da negociação política ou do cálculo dos interesses sociais”, encerrava de forma peremptoria. Tese igualmente acolhida e sustentada por Ronald Dworkin em “Justiça para Ouriços”.
Não se pode falar, no entanto, do Direito, da Liberdade, da Igualdade sem previamente falar do primado da Justiça. Todos estes conceitos emanam da justiça e dependem inteiramente dela para a sua eficaz exequibilidade. A partir do momento que, numa determinada sociedade, a Justiça é deficitária ou deliberadamente preterida isto acaba por obstar à autonomia do Estado de Direito, consubstanciando radicalmente no leviatã estatal. Daí entendermos que a Justiça tem primazia em tudo: está acima da Democracia, da Lei, do Contrato Social e, em determinados casos, do próprio conceito de Direito.
Sabemos que a justiça dos homens nem sempre segue escrupulosamente esta tramitação axiológica, tendo em conta a oposição dos vários interesses em jogo, optando assim por enveredar pelo caminho do negacionismo, discricionariedade e relatividade dos grandes Princípios e Valores Humano-sociais. E perante esta proliferação miasmática a consequência não poderia ser mais do que um défice acentuado na concepção da justiça, com profundas sequelas no comportamento social.
A única alternativa soteriológica que nos resta, a nosso ver, prende-se com a reconfiguração total do actual modelo pernicioso da “justiça dos poderosos” que a generalidade das sociedades incorpora, inclusive as ditas “sociedades livres”, procurando acima de tudo ajustá-la a um cânone mais realista e com a supremacia total da justiça face a quaisquer outras valorações humanas.