O Que é a Felicidade?


A pergunta é bastante sugestiva e pertinente nos ansiosos, conturbados e depressivos dias que correm. Definir a felicidade é uma tarefa complicadíssima, visto que não é uma questão assim tão nítida e linear de abordar. Ela remete-nos concomitantemente para várias considerações dogmáticas, nomeadamente etimológicas, filosóficas, religiosas e culturais, para assim podermos holisticamente aferir com precisão o seu verdadeiro substrato axiológico. Apesar de todas essas diversas formulações e mundividências subjacentes em torno dela, é um facto universalmente assente e manifestamente incontestável que todas os seres humanos à face da Terra almejam e buscam afincadamente a felicidade como supremo bem, mesmo desconhecendo, na generalidade de situações, no que ela realmente consiste ou as vias mais correctas de encontrá-la. Esta legítima aspiração é notória na ênfase e primazia que as pessoas incansavelmente vão dando à felicidade no seu quotidiano, desdobrando-se no domínio pessoal, afectivo-amoroso, familiar, relacional, literário, musical, profissional, político e governativo. A felicidade faz parte do cardápio indispensável do ser humano. Sem ela a vida seria completamente monótona e não faria qualquer tipo de sentido, razão pela qual é a legítima meta de todos os seres humanos. 

Do ponto de vista etimológico, a felicidade é associada ao estado de quem anda feliz, abarcando adjectivos como sorte, boa fortuna, êxito, contentamento, satisfação, realização e o bem-estar do individuo. Estes valores antropológicos conjugados ganham um peso relevantíssimo na globalidade dos seres humanos. Acontece que, por razões cognoscíveis, o enquadramento da felicidade no âmbito filosófico ultrapassa esta mera definição, máxime no pensamento classicista de Sócrates, Platão e Aristóteles, respectivamente. Na doutrina socrática, a que se pode extrair nos escritos dos seus discípulos Xenofonte e Platão, parte da premissa utilitarista para definir o conceito da felicidade, precedendo neste importante debate as concepções filosóficas de Epicuro, Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Este, sobretudo, já no século XIX, definia o utilitarismo como sendo “a doutrina que aceita como fundamento da moral a utilidade, ou o princípio da maior felicidade, defende que as acções são correctas na medida em que tendem a promover a felicidade, e incorrectas na medida em que tendem a gerar o contrário da felicidade. Por felicidade entendemos o prazer, e a ausência de dor; por infelicidade a dor, e a privação de prazer[1].  O Professor Miguel Nogueira de Brito considera que é possível identificar pelo menos quatro propostas para definir o que seja utilidade, ou o bem-estar das pessoas. De acordo com a primeira dessas propostas, e talvez a mais influente, “o bem-estar consiste na experiência ou sensação de prazer. Uma segunda forma de definir utilidade recusa a orientação hedonista e, em vez disso, aceita que uma experiência recompensadora pode não ser necessariamente fonte de prazer. Uma terceira opção, talvez a mais difundida entre os filosóficos que se reclamam utilitaristas, consiste na definição da utilidade em termos da satisfação de preferências. Nesta perspectiva, aumentar a utilidade das pessoas significa satisfazer as suas preferências, sejam elas quais forem. A quarta forma de conceber a utilidade: trata-se daquela que procura resolver o problema das falsas preferências através da definição do bem-estar como a satisfação das preferências racionais ou informais[2]

Comungando holisticamente do eudemonismo, Sócrates vai resumindo que o que importa é a felicidade de todos e não a individual, tratando-se em última instância da do sábio. Um entendimento igualmente defendido por Platão, nas suas construções doutrinárias, ainda com maior alcance. Este, de forma subsumida, associa e identifica a felicidade com o bem e o prazer como sendo conceitos interligo-determinados e redutos últimos da verdadeira felicidade. Aristóteles, por sua vez, discorda parcialmente com esta mundividência de Platão em que a ideia do bem tomado como modelo não é modelo de coisa alguma, uma vez que o bem em si, mesmo tendo por objecto tornar conhecidas as diferentes formas de bens concretos, não passa de uma ideia indeterminada do bem. Nesta ordem de ideias, define a felicidade como actividade da alma de acordo com a virtude mais perfeita do homem. Ainda na mesma esteira do pensamento, segundo a obra conjunta de Caillé, Lazzeri e Senellart que cita Ética Nicómaco de Aristóteles, “o homem deve descobrir o que constitui a sua tarefa, aquilo que o visa e lhe diz respeito em supremo grau. Tal descoberta constitui o facto da ciência política. Tal ciência, soberana e dirigente possui por objecto o bem próprio do homem, bem idêntico para o individuo e para a cidade, mas mais perfeito quando atingindo e perseverado por toda uma cidade. A procura da felicidade adquire, pois, de imediato uma índole colectiva e política (…) É vivendo com os outros que o homem pode ser feliz”[3], encerrava advertidamente. 

Em relação à mundividência religiosa, máxime nas três grandes religiões monoteístas, nomeadamente no Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, a felicidade transcende o comummente raio antropológico. Só é feliz nestas três religiões quem obedece aos cânones divinos pré-estabelecidos por ambas as denominações religiosas. O Judaísmo centraliza parte da sua adoração na Torah, que resumidamente se encerra em dez mandamentos outorgados pelo Patriarca Moisés (Êxodo 20:1-17). Cabe, por sua vez, a todos os fiéis, pôr escrupulosamente em prática a Lei de DEUS nos seus corações, afastando-se de qualquer tipo de mal, pois “feliz o homem que não segue o conselho dos maus, não se detém no caminho dos pecadores, nem toma parte na reunião dos provocadores! Antes põe toda a sua alegria na lei do Senhor e nela medita de dia e de noite. Ele é como uma árvore plantada à beira da água corrente, que dá o seu fruto na estação própria e cujas folhas não murcham. Em tudo o que faz é bem-sucedido”, exortava peremptoriamente o salmista para esboçar a ideia da felicidade no judaísmo (Salmo 1:3; 119:1-3). 

O Cristianismo parte deste postulado teológico, no entanto vai reinterpretando harmoniosamente o conceito teleológico da Lei, demonstrando que a justificação do Homem (a felicidade suprema, bem entendido) é unicamente pela Graça Redentora de DEUS, mediante a fé no Senhor Jesus Cristo (Efésios 2:8-10), diferentemente do entendimento do Judaísmo. Para que serve então a Lei no Cristianismo? A Lei, de acordo com o Apóstolo Paulo, servia “para mostrar aquilo que é contra a vontade de Deus. E só devia durar até que viesse aquela descendência, a quem a promessa se destinava. (…) Dessa maneira, a lei foi a nossa educadora, até que viesse Cristo, a fim de sermos justificados por meio da fé. Agora que veio o tempo da fé, já não estamos sujeitos à lei como nossa educadora, visto que pela fé que nos une a Jesus Cristo somos filhos de Deus. Com efeito, todos os que foram baptizados em Cristo revestiram-se das qualidades de Cristo” (Gálatas 3:19; 24-26). Um entendimento também reforçado em toda a epístola aos Romanos. A fé no Senhor Jesus Cristo, ancorada na Graça Soteriológica, é o único meio para o Homem usufruir plenamente das Bem-aventuranças eternas (vide, por todos os exemplos bíblicos, o grande Sermão do Monte do Senhor Jesus em Mateus 5:1-12 onde estas grandes verdades foram manifestamente proclamadas). E isto se evidencia, em última instância, na Lei do Amor (1 Coríntios 13:1-13), que consiste em amar a DEUS acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Destes dois mandamentos, admoestava firmemente o Senhor Jesus, dependem toda a lei e os profetas (Mateus 22:37-40; Marcos 12:30-31; Lucas 10-27-28)

Ao contrário do Judaísmo e o Cristianismo o Islão exorta os seus fiéis a esforçarem-se a fazer a Jihad[4] e a Sharia[5]. Para superar as forças dos ímpios pode ser necessário lançar mão da jihad contra os infiéis, o que por sua vez pode significar recorrer à “guerra santa”. O martírio está na essência do estado de pureza religiosa e felicidade. Como afirmava Hassan al-Banna, fundador e líder da Irmandade Muçulmana, assassinado em 1949, para ilustrar este postulado: “o Corão é a nossa constituição, o Profeta é o nosso guia; a morte em nome da glória de Alá é a nossa maior ambição”[6]. O principal objectivo de todas as acções humanas, escreve ainda Manuel Castells e reconfirmado por Hans Küng na sua emblemática obra “Islão”, deve ser o estabelecimento da lei de Deus para toda a humanidade, colocando assim um ponto final na actual oposição entre Dar al-islam (o mundo muçulmano) e Dar al-Harb (o mundo não muçulmano). Verificado este processo "natural” de harmonização deixa automaticamente de haver subjectividade e tudo se passa a desenrolar por meio da umma[7]: o individuo torna-se parte da comunidade dos fiéis, um mecanismo básico de igualdade que oferece apoio mútuo, solidariedade e significados compartilhados. Tudo isto fundando-se com base na Sharia, que prevalece sobre a ideia do Estado-Nação e vincula toda a comunidade muçulmana, que aguarda determinadamente a devida recompensa na glória por ter honrado este ditame religioso. 

No âmbito cultural a concepção da felicidade acaba por ser praticamente idêntica em todas as culturas e os povos do mundo, registando apenas algumas nuances. A base da felicidade prende-se, mormente, por ser portador de uma boa saúde, educação, honrar os pais, ter uma boa formação profissional, um bom emprego que lhe habilite a possuir riquezas materiais, casar com uma pessoa bem-sucedida e construir com ela uma família estável, tendo inclusive filhos saudáveis e bem-aprumados nessa união matrimonial. A partir do momento que uma pessoa consegue preencher estes pressupostos convencionais, ela é automaticamente vista e considerada como sendo feliz. A felicidade acaba assim por ser entendida e esgotada, em todas as dimensões culturais, com a exterioridade do ter, isto é, ter saúde, ter formação/profissão, ter trabalho, ter família, ter filhos, ter poder, ter riqueza e ter uma vida desafogada, ter sucesso, etecetera. Justamente por isso, levando à letra esta máxima, todo o mundo luta incansavelmente para ter o poder, a riqueza, a glória e a fama, uma vez que todos os outros “teres” advêm destes efémeros atributos humanos. 

Da nossa parte, como devotos Cristãos que somos, comungamos plenamente com o conceito da felicidade do Cristianismo. A maior felicidade que uma pessoa pode ter durante a sua peregrinação neste tenebroso mundo é crer resolutamente no Senhor Jesus Cristo (Actos 16:31), e procurar diariamente ajustar a sua transitória vida aos impolutos mandamentos do Todo-Poderoso DEUS (Actos 26:20). Entendemos ainda que a felicidade vai muito mais além de que qualquer tipo de exterioridade, aparente sucesso social ou a ideia de um mero prazer passageiro, tal como é erradamente enfatizado no nosso mundo pós-moderno. Ela é, sem dúvida, um estado de alma. Há muitas pessoas afortunadas e com grandes sucessos sociais, mas, mesmo assim, destituídas da verdadeira felicidade, vivendo atormentadas, depressivas, desorientadas e completamente infelizes. Têm uma vida totalmente oca, triste e miserável. Outras, pobres, sem qualquer tipo de conforto material, são genuinamente felizardas. Um autêntico paradoxo, não é? Tudo isto para vincar que a felicidade não tem propriamente que ver com o “ter” ou com a falsa ideia do prazer imediato, mas sim com o “ser”. É no “ser”, aquilo que realmente somos, na nossa simplicidade de ver e encarar a vida, que a felicidade se manifesta com toda a sua força e vigor, porque ela é de interioridade e habita unicamente na interioridade da pessoa. Saber, acima de tudo, conviver e conformar-se com aquilo de que dispomos. Sermos realistas nas nossas abordagens e legítimas expectativas de vida, especialmente saber valorizar as pequenas coisas. Cultivar a gratidão pela vida e tudo aquilo que ela nos vai proporcionando – quer sejam coisas boas e más, uma vez que a felicidade consiste sobretudo neste binómio. Ser, igualmente, humildes, virtuosos, amorosos, solidários e pensar sempre no bem do próximo, bem como nunca se cansar de praticar boas acções. Afastar do mal e praticar sempre o bem, buscando a paz e reconciliação com tudo e todos à nossa volta. Eis, de forma abreviada, a definição e receita para a verdadeira felicidade. 



[1] John Stuart Mill, in Utilitarismo, p. 50 e 51, Editora, Gradiva, Lisboa, 2005.
[2] Miguel Nogueira de Brito, “As Andanças de Cândido [Introdução ao Pensamento Político do século XX, p. 19 e 20, Edições 70, Lisboa, 2009.
[3] História Crítica da Filosofia Moral e Política, p. 73, Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 2005.
[4] Palavra que na sua raiz etimológica significa empenho, consubstanciando a luta interior e exterior em nome de Alá.
[5] Legislação – o primado da lei islâmica face a qualquer tipo de Direito.
[6] Manuel Castells, O Poder Da Identidade [A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura], Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 14.
[7] Comunidade de fiéis, em que todos são iguais na sua submissão perante Alá.