Da Democracia na América: A Minha Leitura Sobre os Dois Candidatos Presidenciais e o Possível Vencedor


A forma mais fidedigna de aferir com precisão os hábitos, costumes e mundividências do povo americano é ler “Da Democracia na América” de Alexis de Tocqueville. É uma obra colossal que dispensa glosas. Nela o célebre autor francês reduzia sabiamente a peculiaridade civilizacional do povo americano, destacando todas as importantes áreas subjacentes a uma sociedade moderna. Aborda ainda os grandes pilares da democracia participativa, nomeadamente o direito, a igualdade, a liberdade, a segurança, a protecção, a economia e o progresso. É um dos mais reputados livros alguma vez escritos sobre a sociologia dos EUA e um dos mais influentes a nível da filosofia política. 

Por isso, propomos analisar as eleições norte-americanas com base nele, fazendo concomitantemente as devidas adaptações aos nossos dias coevos. Desde já, antes de prosseguirmos com o nosso pensamento, importa esclarecer que não estamos a apoiar nenhum dos candidatos. Se porventura fôssemos americanos, por imperativo de consciência, teríamos optado por abstenção como oportunamente justificamos aqui em outras ocasiões. Temos vindo a acompanhar, com particular atenção e interesse, o desenrolar de todo o processo de eleições para o próximo Presidente dos EUA, máxime o aparente paradoxo que o mesmo encerra. O delirante espectáculo político que os republicanos e os democratas estão a proporcionar ao mundo inteiro é a manifestação visível do “espírito americano” na sua plenitude. 

Neste momento é bastante prematuro augurar um possível vencedor das eleições. Numa leitura superficial e descuidada alguns precipitar-se-ão em atribuir a vitória à Kamala Harris, tendo em conta a sua posição mais ou menos ortodoxa e equilibrada à luz do “progressismo moderno”, comparativamente com o seu adversário Donald Trump, e acrescentando o facto de ser a segunda mulher na história do país a concorrer ao tão cobiçado cargo da República.  No entanto, numa visão meramente tocquevilliana, o candidato republicano Trump parte com um ligeiro avanço face à Kamala, dado que encarna melhor os valores do “America safe again” e/ou “America great again”. 

E mais, acresce ainda o facto de Trump defender no seu programa eleitoral temas bastantes caros aos americanos, especialmente a questão da economia, a segurança interna, o mercado protecionista, a política anti-imigração e a guerra aos radicais islâmicos. É um populista nato. Fala coisas agradáveis aos ouvidos dos seus conterrâneos que muitos pensam, mas que receiam dizer em público para não ferir susceptibilidades e serem politicamente incorrectos. O candidato Trump não teme este risco continuo das coisas, razão pela qual veicula vigorosamente o mote da expulsão massiva dos imigrantes ilegais nos EUA para, deste modo, atrair mais votos e consolidar o seu favoritismo perante o eleitorado. 

A Kamala, diferentemente, não definiu uma estratégia clara na sua agenda política. Ela tem limitado somente a contrariar a política de Trump, aproveitando alguns louros da actual administração que ela é Vice-presidente. Kamala é muito vaga no seu posicionamento sobre a temática da imigração, a economia, a guerra no Médio Oriente, especialmente entre Israel e o Hamas, assim como o impasse acentuado no conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia. Tem focalizado mais na sua bandeira ultra progressista de liberalizar a hedionda pratica do aborto – e com todas implicações nefastas que isto terá e representará na vida de milhões dos americanos. 

Há ainda dois relevantes factores que jogam a desfavor de Kamala Harris: por ter sido conotada com os fracassos políticos de Washington, D.C. nos últimos anos e ser uma mulher na corrida presidencial. Ali, através da política menos conseguida do Presidente Joe Biden e por ser braço-direito deste como Vice-presidente, sendo manifestamente imputados todos os aspectos menos bons da actual administração. Aqui, tão-simplesmente, por ser uma mulher. É isto mesmo: uma mulher. Aquilo que poderia ser um triunfo inicial para ela poderá vir a ser uma autêntica pedra de tropeço. Isto porque os americanos, ao contrário dos outros povos, têm um conceito particular da concretização do Princípio da Igualdade. E como escrevia Tocqueville, para ilustrar e vincar esta grande realidade: “a América é o país do Mundo onde se teve o cuidado mais continuado de traçar para os dois sexos linhas de acção nitidamente distintas, querendo-se que eles andassem simultaneamente a par e por caminhos diferentes. Não se vê nenhuma americana a dirigir os assuntos externos da família, ou à frente de uma actividade comercial, ou agindo na esfera política, mas também não se encontra nenhuma mulher que seja obrigada a dedicar-se aos duros trabalhos da agricultura ou aos penosos labores que exigem o desenvolvimento da força física; e não existem famílias tão pobres que sejam obrigadas a fazer excepção a esta regra” (in “Da Democracia na América”, p. 724, Principia, Estoril, 2007). Os homens e as mulheres, nos EUA, há pelo menos um século, desempenhavam funções distintas uns dos outros, sem beliscar o Princípio da Igualdade na sua essência e construção, obviamente na óptica do autor francês. 

É verdade que já não se nota assim tanto uma diferenciada função entre os homens e as mulheres no mundo Ocidental. Houve, de facto, significativos avanços a nível da mentalidade das pessoas e na legislação dos países, minimizando assim as barreiras outrora existentes entre ambos os sexos, inclusive nos EUA. No entanto, tal não quer dizer que não haja ainda certos vestígios de preconceitos generalizados em relação à capacidade comprovada da mulher para conduzir os destinos políticos de uma nação. Uma coisa é ela ter vindo a desempenhar funções relevantes no aparelho do Estado e nas grandes empresas. Outra coisa, e bem diferente, é ser-lhe conferida a oportunidade única de ser Presidente de um país. Neste campo as mulheres continuam ainda a ser manifestamente discriminadas e relegadas para segundo plano, por serem apenas aquilo que são em termos biológicos, não obstante algumas melhorias verificadas no nosso mundo actual. Nos EUA, fazendo fé os relatos de Tocquiville e também no “cadastro histórico” do país, ficam ainda bastante aquém na matéria de Direitos Humanos. São ainda, em abono da verdade, tendenciosamente machistas. 

A Kamala Harris do ponto de vista objectivo tem tudo para ser a próxima Presidente da República dos EUA. Além da inquestionável tarimba política que acumulou ao longo dos anos, e mais precisamente nos últimos quatro anos, conhece muito bem os dossiers governativos. Está habilitada para ocupar a Casa Branca do que propriamente o radical, sectário e condenado Trump. Só que, por vicissitudes várias, as coisas não são assim tão lineares como aparentam. Ela para ganhar as eleições vai depender de vários factores conjugados, nomeadamente que Trump continue a cometer constantes gafes, a radicalização do discurso deste, a acentuação de cisão no seio do partido republicano e, por fim, que não haja nenhuma alteração brusca e em grande escala na política internacional nas próximas horas que se avizinham, sobretudo no Médio Oriente, aqui na Europa e no Indo-Pacifico. São estes importantes factores que vão garantir-lhe a eleição, caso contrário, tal será bastante difícil. 

A Kamala Harris se ganhar as eleições amanhã não é por ter um programa de governo auspicioso, mas sim pelo demérito do seu adversário Trump. Um homem com uma ideologia política extremamente perigosa: sexista por convicção, suprematista, belicoso, hipócrita, prepotente e ultranacionalista. Tanto que, por esta razão, foi condenado por fraude fiscal. Trump será uma ameaça para o mundo inteiro, isto é, se conseguir concretizar o seu maléfico intento, tal como tem veiculado por inúmeras vezes. Apesar dessas suas posições fraturantes e preocupantes, mesmo assim elas têm tido um acolhimento favorável na sociedade americana. Isto deve-se ao facto de os americanos darem demasiada primazia aos pontos chave do seu programa eleitoral, tal como supra destacamos. 

Vai correr muita tinta até as eleições de amanhã. Não temos margem para duvidar disso. Tudo ainda pode acontecer. É isto que faz os EUA ser o grande país que é e uma das maiores democracias do mundo. Cabe tudo nele. E nele tudo cabe. Consegue conviver pacificamente com os paradoxos. E estas eleições são uma autêntica manifestação dos antagonismos e da imprevisibilidade do povo americano. Os dois candidatos presidenciais são medíocres e ficam bastantes aquém daquilo que o povo americano merece. 

Da nossa parte, vamos aguardar serenamente o que o futuro dirá daqui algumas horas. De uma coisa temos absoluta certeza, e não hesitaremos em afiançá-lo publicamente: os EUA jamais serão iguais com o próximo Presidente da República – para o bem e para o mal.