Teologia de Natal e a Matança das Criancinhas


“Em Ramá se ouviu um grito,

choro amargo, imensa dor.

É Raquel a chorar os filhos;

e não quer ser consolada,

porque eles já não existem” (Mateus 2:18).  



O nascimento do Senhor Jesus Cristo e o Seu ministério terreno foram profundamente marcados por grandes e reiteradas conspirações por parte dos filhos da perdição, com a finalidade última de liquidá-Lo fisicamente e, deste modo, frustrar os salvíficos planos de DEUS para com a Humanidade. Apesar de todas estas orquestrações diabólicas bem montadas, o Todo-poderoso DEUS jamais perdeu o controle da história e o curso dos acontecimentos. As vãs tentativas contra o Filho Unigénito de DEUS acabaram meramente por cooperar para o cumprimento escrupuloso das profecias bíblicas a respeito do Messias outrora prometido. 

A passagem bíblica supramencionada é o reflexo manifesto de várias conspirações falhadas contra a vida do Senhor Jesus. O rei Herodes, de forma dissimulada e mentirosa, garantiu aos magos do oriente a sua falsa intenção de ir também adorar o infante Jesus, ordenando-lhes para se informarem “cuidadosamente acerca do menino e, quando o encontrarem, venham-me dizer para eu ir também adorá-lo” (Mt 2:8). Quando se apercebeu que os magos partiram para sua terra, sob a Divina orientação, depois de terem previamente adorado o Senhor Jesus, aumentou ainda mais a sua fúria “e mandou matar, em Belém e nos arredores, todos os meninos de dois anos para baixo, conforme o tempo que ele tinha apurado pelas palavras dos sábios” (Mt 2.16). O objectivo do rei Herodes era exclusivamente matar o inofensivo menino Jesus. Este foi sempre o seu plano inicial quando soube do nascimento do novo Rei dos reis em Belém da Judeia. 

O rei Herodes, descrevia Hernandes Dias Lopes no seu comentário expositivo de Mateus, “era paranoico em relação ao poder. Foi um rei truculento, egoísta, assassino e tirano. Era a essência da crueldade e do terror. Governou com mão de ferro e esmagou impiedosamente todos aqueles que julgava serem uma ameaça ao seu governo. Assassinou seus rivais um após o outro. Foi esse rei cruel que quis eliminar o infante Jesus, mandando matar todas as crianças de Belém e arredores de 2 anos para baixo”[1]. Confirmando holisticamente este carácter tresloucado e perverso do rei Herodes, Joseph Ratzinger sustenta que este “no ano 7 a.C., justiçara os seus filhos Alexandre e Aristóbulo, porque sentia o seu poder ameaçado por eles. No ano 4 a. C., pelo mesmo motivo eliminara também o filho Antípatro. Herodes raciocinava apenas segundo as categorias do poder; a notícia de um pretendente ao trono, que ouvira dos magos, deve tê-lo alarmado. Tendo em conta o seu caráter, é claro que nenhum escrúpulo poderia detê-lo”[2]. 

O rei Herodes era um homem vil, implacável, prepotente, cruel e desumano, que não tinha nenhuma hesitação em matar os seus opositores, inclusive familiares, por causa do poder ou para obter o poder. O seu currículo estava completamente manchado por crimes horripilantes e de sangue. Mandou matar todos os meninos de dois anos para baixo, julgando que conseguiria desta forma matar o menino Jesus. Felizmente, pela providência Divina, Maria e José haviam previamente fugido com Jesus para o Egipto. E, assim, escaparam da desgraça mortal promovida por Herodes em Belém e nas regiões circunvizinhas. 

Depois da mortandade das criancinhas em Belém, o Evangelista Mateus relata-nos o pranto generalizado que tomou conta das mães judias que perderam injustamente os seus filhos pelo maquiavélico decreto de Herodes, personificada na mulher de Jacob – Raquel. Narra o autor sagrado que “Em Ramá se ouviu um grito, /choro amargo, imensa dor. /É Raquel a chorar os filhos;/e não quer ser consolada,/porque eles já não existem” (Mt 2:18), citando assim o texto original de Jeremias 31:15, como o cumprimento da referida profecia do Antigo Testamento. Raquel, a mulher predilecta do patriarca Jacó, simbolicamente a mãe das tribos do Norte, chora amargamente pelo desaparecimento dos seus filhos, pois já não existiam mais. A mãe Raquel, comenta sobre o alcance teológico deste versículo a Bíblia de Estudo de Genebra, “representa todo o Israel em suas lágrimas, a partida de Cristo para o Egipto é como a partida dos filhos de Raquel, José e Benjamim para o Egipto (Gn 37.28; 43.15)”[3]. 

Este grande pranto da desolada mãe Raquel para com os seus filhos desaparecidos, Israel de DEUS, a nosso ver, pode igualmente ser enquadrado lato senso na destruição e conquista do reino do Norte pelos assírios em 722 a. C., bem como no penoso cativeiro babilónico profetizado por Jeremias (2 Rs 17:1-6; 18-9-15; 2 Rs 24:8-17; 25:1-21; 2 Cr 36:9-21).  O Evangelista Mateus interpreta este acontecimento no tempo de Jeremias, como uma profecia do clamor que se ouviu na matança das crianças em Belém. Tasker, citado por Hernandes Dias Lopes, formula que “quando a fina flor da população de Jerusalém foi deportada pelos babilónios, deve ter parecido que Deus tinha abandonado o seu povo; e Jeremias nessa notável passagem retratou Raquel lamentando a sorte desses exilados passando cambaleantes diante do túmulo dela em Ramá, a caminho de uma terra estranha”[4]. 

Raquel, que teve um processo de parto dificílimo e trágico a caminho de Efrata, tal como nos contam os relatos bíblicos, morreu depois ter dado à luz Benjamim. Raquel morreu e foi sepultada junto do caminho para Efrata, isto é, em Belém (Gn 35:16-20). O biblista Matthew Henry, colaborando com o título atribuído a Raquel de “mater dolorosa”, e justificando esta profecia bíblica com a letra e o espírito do Novo Testamento, comentava que “o sepulcro de Raquel estava junto a Belém (Gn 35:16-19). O coração de Raquel estava sobre os seus filhos, como estava sobre o seu filho naquele trabalho de parto que a levou à morte e a quem ela deu o nome de Benoni, que significa filho do meu sofrimento. Essas mães eram como Raquel, moravam perto do seu túmulo e muitas delas eram suas descendentes. Portanto, seus lamentos foram elegantemente representados no pranto de Raquel”[5]. 

O alcance teológico e teleológico desta passagem bíblica em apreço não pode ser dissociado – primeiramente – das verdades soteriológicas do cativeiro do Egipto e, posteriormente, assírio e babilónico. Todos estes cativeiros humilhantes que Israel de DEUS teve de enfrentar foram uma autêntica dor para as mães judias, simbolicamente representadas por Raquel, porque envolviam expropriação, exílio, escravatura e morte, razão pela qual choravam dolorosamente a desgraça dos seus filhos e não se deixavam consolar, “porque eles já não existiam mais”. Choravam desconsoladamente o desaparecimento dos seus filhos que foram brutalmente massacrados e assassinados. Não estão mais no mundo dos vivos. Uns, neste vasto leque de filhos, morreram barbaramente e outros foram levados pelas terras estranhas e distantes para serem escravos. 

Sabemos, no entanto, que estas duras realidades que Israel teve de enfrentar visava, em última instância, moldar o povo de DEUS para o caminho certo e para uma verdadeira adoração. Em todos estes cativeiros “Egipto”, o Eterno DEUS providenciou-lhe um salvador, enquanto ainda não tinha aparecido o maior e o único Salvador de todos: o Senhor e Salvador Jesus Cristo. Mas, para isso, seguindo a narrativa de Mateus, era importante que o Messias fugisse momentaneamente para o Egipto “para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor pelo profeta, que diz: Do Egipto chamei o meu Filho (Mt 2:15).” Assim, foi dada a resposta cabal da fuga de Maria, José e o menino Jesus para o Egipto. Além do cumprimento efectivo da profecia de Oseias 11:1 que encerra esta pertinente fuga, o Egipto também era a terra da escravidão para o povo de DEUS e, concomitantemente, da salvação. Um paradoxo, não é? O Todo-poderoso DEUS usou o patriarca Moisés para libertar o seu povo do cativeiro dos faraós egípcios, assim também usou poderosamente o Seu Filho Amado Jesus Cristo, com alcance ainda maior e perfeito, para salvar definitivamente o Seu povo da escravidão do pecado. 

Há, por este motivo, o paralelismo entre Moisés e o Senhor Jesus no processo da salvação do povo de DEUS. Assim como Moisés levantou a serpente de bronze no deserto, escreve o evangelista João para ilustrar esta grande e inequívoca verdade salvífica, “assim também é necessário que o Filho do Homem seja levantado para que todo aquele que nele crer tenha a vida eterna” (Jo 3:14-15). Hernandes Dias Lopes, citando Tasker que comenta o alcance teológico da profecia bíblica de Oseias 11:11, sustenta “que o Messias é a personificação do verdadeiro Israel antigo e também que ele era um segundo Moisés, maior que o primeiro. Sua suprema obra de salvação tinha como modelo o poderoso ato de salvação realizado por Deus por meio de Moisés em favor do povo escolhido. E, tal como Moisés foi chamado para ir ao Egito e libertar Israel, filho primogênito de Deus (Ex 4.22), da escravidão física, assim também Jesus foi chamado do Egito em sua infância, por meio da divina mensagem transmitida a José, para salvar a humanidade da escravidão do pecado”[6]. Joseph Aloisius Ratzinger, nesta mesma esteira do pensamento, vai ao ponto de considerar que “a história de Israel recomeça do princípio e de modo novo com o regresso de Jesus do Egipto à Terra Santa. Certamente, o primeiro chamamento para se regressar do país da escravidão tinha falhado sob muitos aspetos. (…). Com a fuga para o Egipto e o seu regresso à Terra Prometida, Jesus opera o êxodo definitivo. Ele é verdadeiramente o Filho. Ele não sai de casa para se afastar do Pai; Ele volta a casa e conduz a casa. Ele está sempre a caminho para Deus e assim conduz da alienação à «pátria», àquilo que é essencial e próprio. Jesus, o verdadeiro Filho, saiu Ele mesmo, em sentido muito profundo, para o «exílio» a fim de nos trazer a todos da alienação para casa”[7]. 

Este regresso definitivo a casa do povo de DEUS concretizou-se com a morte e ressurreição do Senhor Jesus Cristo. Antevendo de longe esta realidade, o Profeta Jeremias, ainda na mesma profecia desoladora, consola de forma peremptória o povo com as seguintes palavras: “Não chores mais — diz o Senhor, e limpa as lágrimas dos teus olhos. Tudo o que fizeste terá a sua paga e os teus filhos regressarão da terra do inimigo. Há esperança para o teu futuro; os teus filhos voltarão para casa. Palavra do Senhor!” (Jr 31:16). Na tristeza do exílio babilónico, “uma nova vida se tornou possível para um Israel revivificado. Semelhantemente, a tristeza das mães privadas de seus filhos assassinados por Herodes estava destinada, na divina providência, a resultar em grande recompensa”, fundamenta Tasker[8]. Por outras palavras, as lágrimas desoladoras transformar-se-iam agora em alegria contagiante e permanente (Sl 126:1), através da milagrosa libertação do povo de DEUS. 

Diferentemente da profecia de Jeremias, que contém logo a seguir esta mensagem de esperança para os que foram torturados, mortos e espalhados com o cativeiro, em Mateus não foi descrita esta esperança.  Porquê?  Porque o Evangelista Mateus não tinha ainda dado a conhecer a ressurreição e glorificação do Senhor Jesus. O autor sagrado preocupou-se apenas, numa primeira fase, em evidenciar na sua abordagem o processo do nascimento do Messias, no cumprimento das profecias bíblicas e a mão poderosa de DEUS no curso dos acontecimentos. A resposta da esperança em Mateus só veria a luz do dia com a morte expiatória do Senhor Jesus Cristo na Cruz do Calvário e a Sua eterna glorificação – onde recebeu todo o poder no céu e na terra (Mt 28:18). Um entendimento previamente defendido por Joseph Ratzinger, que esclarece que “em Mateus, a palavra do profeta – a lamentação da mãe sem a resposta consoladora – é como um grito dirigido ao próprio Deus, um pedido da consolação não dada e ainda esperada: um grito ao qual realmente só o próprio Deus pode responder, já que a única verdadeira consolação – que vai para além das simples palavras – seria a ressurreição. Só com a ressurreição seria superada a injustiça, revogada a palavra amarga «já não existem»”[9]. 

Sim, com a morte expiatória do Senhor Jesus Cristo e a Sua gloriosa ressurreição foram banidos todo o pecado: a escravidão, a dor, a lágrima e a morte para todos os eleitos filhos de DEUS. ELE poderosamente enxugou todas as lágrimas dos seus olhos e já não haverá mais morte nem luto nem pranto nem dor” (Ap 21:4). A nossa esperança e eterna salvação estão unicamente firmados nos méritos do Senhor Jesus Cristo. Por isso, nenhuma mãe jamais chorará o desaparecimento físico dos seus filhos ou algum ente querido. Não haverá mais sofrimento, desgraça, maldade e pecado. Tudo transformar-se-á em eterno gozo, louvor e adoração ao nosso DEUS Altíssimo para todo o sempre. Que assim seja. Vai ser sempre assim. E assim sempre será.

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[1] Hernandes Dias Lopes, in Comentário Expositivo de Mateus (Jesus, o Rei dos reis), Hagnos, São Paulo, 2019, p.62 e 63. 

[2] Joseph Ratzinger/Bento XVI, in Jesus de Nazaré [A Infância de Jesus], Principia, Cascais, 2012, p. 92. 

[3] Bíblia de Estudo de Genebra, in comentário bíblico de Mateus 2:18. 

[4] Hernandes Dias Lopes, in Comentário Expositivo de Mateus, p. 75 e 76. 

[5] Matthew Henry, in Comentário Bíblico do Novo Testamento (Mateus a João), Casa Publicadora das Assembléias de Deus, Rio de Janeiro, 2008, p. 15 e 16. 

[6] Hernandes Dias Lopes, in Comentário Expositivo de Mateus, p.75. 

[7] Joseph Ratzinger/Bento XVI, in Jesus de Nazaré (A Infância de Jesus), p. 94. 

[8] Hernandes Dias Lopes, in Comentário Expositivo de Mateus, p. 76. 

[9] Joseph Ratzinger/Bento XVI, in Jesus de Nazaré, p. 95 e 96.