A
forma mais fidedigna de aferir com precisão os hábitos, costumes e
mundividências do povo americano é ler “Da Democracia na América” de
Alexis de Tocqueville. É uma obra colossal que dispensa
glosas. Nela o célebre autor reduzia sabiamente a peculiaridade civilizacional
do povo americano, destacando todas as importantes áreas subjacentes a uma
sociedade moderna. Aborda ainda os grandes pilares da democracia participativa,
nomeadamente o direito, a igualdade, a liberdade, a segurança, a protecção, a economia
e o progresso. É um dos mais reputados livros alguma vez escritos sobre a sociologia
dos EUA e um dos mais influentes a nível da filosofia política. Por isso,
propomos analisar a questão do racismo e da democracia nos Estados Unidos da
América (EUA) com base nele, fazendo concomitantemente as devidas adaptações
aos nossos dias coevos.
Desde
logo, o insigne autor francês começa por abordar de forma prolixa a posição das
três raças que habitam o território dos Estados Unidos da América (EUA),
nomeadamente os índios, os brancos e os negros, considerando que entre homens
tão diversos, o segundo que “atrai a atenção, o mais esclarecido, poderoso e
feliz é o homem branco, o Europeu, o Homem por excelência; abaixo dele, estão
negro e o Índio. O nascimento, a fisionomia, a linguagem e os costumes destas
duas raças infortunadas nada têm em comum; só os seus infortúnios se assemelham.
Ambas ocupam uma posição igualmente inferior no país onde habitam; ambas
experimentam os efeitos da tirania, e embora as suas misérias sejam de ordens
diferentes, podem, no entanto, atribuir as suas causas aos mesmos autores”[1].
Isto porque, na sua óptica, a escravidão teve mais impactos devastadores para os
negros do que propriamente para os índios, pois “os Índios morreram no mesmo
isolamento em que viveram; mas o destino dos negros está, de certo modo, ligado
ao dos Europeus”[2].
Por outras palavras, “a opressão subtraiu de uma só vez a quase todos os
descendentes dos africanos os privilégios da humanidade! O negro Americano perdeu
até as recordações do seu país; já não ouve a língua que os seus antepassados
falaram; renegou a sua religião e esqueceu os seus costumes. Deixando, deste
modo, de pertencer à África, não adquiriu, contudo, nenhum direito aos bens
europeus. Parou entre as duas sociedades, permanecendo isolado entre dois
povos; foi vendido por um e repudiado pelo outro, encontrando em todo o
universo apenas o lar do seu amo para lhe dar uma imagem incompleta da sua
pátria”[3].
E todas estas desgraças mundanais acabaram por afectar-lhe drasticamente do
ponto de vista cognitivo, fazendo com que não sentisse o seu infortúnio, isto
é, “a violência fez dele um escravo e a prática da servidão conferiu-lhe
pensamentos e ambição de escravo; admira mais os seus tiranos do que os odeia e
encontra a sua alegria e o seu orgulho na servil imitação dos que o oprimem”[4].
Se
de um lado o negro e o índio foram escravizados pelos brancos, sustentava ainda
Tocqueville, “o negro está colocado nos limites extremos da servidão; o
Índio nos dá liberdade. A escravatura não produziu efeitos mais funestos para o
primeiro do que a independência para o segundo”[5].
Tanto que, por esta razão, tendo em conta os enraizados complexos herdados pela
escravatura, “o negro faz mil esforços inúteis para se introduzir na
sociedade que o repele; submete-se aos gostos dos seus opressores, adopta as
suas opiniões e, ao imitá-los, aspira a confundir-se com eles. Logo que nasce,
dizem-lhe que a sua raça é naturalmente inferior à dos brancos e, como não está
muito longe de acreditar que tal seja verdade, tem vergonha de si próprio. Em
cada uma das suas facetas descobre uma marca de escravatura e, se pudesse,
consentiria, com alegria, em repudiar-se inteiramente”[6].
Diferentemente
desta patente complexidade do negro americano, o índio “tem a imaginação
cheia da suposta nobreza da sua origem. Vive e morre entre os sonhos do seu
orgulho. Longe de desejar submeter os seus costumes aos dos brancos, agarra-se
à barbárie como a um sinal distintivo da sua raça e repele a civilização,
talvez menos por lhe ter do que por medo de se tornar semelhante aos europeus.
O negro gostaria de se confundir com o Europeu, mas não consegue. O índio seria
capaz de o fazer, até certo ponto, mas desdenha tentá-lo. O servilismo de um
entrega-o à escravatura e o orgulho do outro à morte”[7].
O índio jamais se submeteu à escravatura ao passo que o negro se conformou com
o seu desventurado destino. Apesar deste conformismo servil do negro, continua
a merecer repulsa a todos os níveis por parte dos seus implacáveis opressores.
Estes concebem o homem negro como sendo insignificante e indigno. Um “homem
que nasce numa classe inferior, a esse estrangeiro que a servidão introduziu
entre nós, mal lhe reconhecemos os traços gerais da humanidade. O seu rosto
parece-nos horrendo, a sua inteligência limitada, os seus gostos ordinários.
Pouco falta para que o consideremos um ser intermédio entre a besta e o homem”[8].
É
este o âmago para podermos compreender holisticamente a condição de
subalternidade e de reiterada humilhação a que os negros americanos foram e são
votados ao longo dos séculos, bem como os conhecidos preconceitos, as
discriminações e o racismo estrutural que infelizmente continuam a carregar no
seu dia-a-dia perante os brancos. Mesmo depois da abolição total da escravatura
em 1865, o homem negro nos EUA continua refém do seu passado de opressão. Mantém-se
refém do sistema que lhe veda uma posição de proeminência na sociedade e na res
publica. É verdade que a actual Constituição Federal dos Estados Unidos da
América (EUA) consagrou o princípio da igualdade entre os cidadãos e a
igualdade das oportunidades entres os mesmos, bem como ractificou os direitos
fundamentais proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, censurando
assim o preconceito, a discriminação, o racismo e a xenofobia, no entanto estas
proclamações legislativas não conseguiram erradicar o costume assente que os
brancos têm em relação aos negros. “Se a desigualdade criada apenas pela lei
é tão difícil de extirpar, como destruir aquela que, para além disso, parece
ter os seus fundamentos imutáveis na própria natureza”, questionava
peremptoriamente Tocqueville[9].
Há, neste aspecto, um manifesto triunfo do costume para com a Constituição
Federal e as Leis da República dos Estados Unidos da América (EUA).
Tendo
em conta as verdades expostas, é importante salientar que o racismo nos Estados
Unidos da América (EUA) está bem sedimentado há séculos, através do costume enraizado
na sociedade. Ele precedeu à fundação da nacionalidade americana, precedeu as emendas
constitucionais que foram posteriormente introduzidas para melhorar a condição
de vida dos cidadãos e afirmar o primado da justiça social. Precedeu, da mesma
sorte, a abertura da Democracia, razão pela qual será bastante difícil de
erradicar definitivamente na sociedade e possivelmente, a nosso ver, julgamos
que este desiderato continuará a ser uma miragem nas próximas décadas.
O
racismo é um dos piores cancros que a decadência humana herdou do pecado
original. Ele é maléfico a todos os níveis. É atentatório da dignidade e da
vida humana. Segrega, discrimina, humilha, oprime e mata. O racismo é contra a
religião e, em última instância, um insulto ao Eterno DEUS. “Precisamente porque
todos os homens são filhos de Deus e
Cristo veio para todos salvar, a
universalidade dos fundamentos e da mensagem cristã tem como consequência a
afirmação de uma regra de igualdade entre todos os homens: tal como São Paulo
afirma na sua Epístola aos Gálatas, “não há judeu, nem grego, não há servo, nem
livre; não há homem, nem mulher””[10].
Toda a discriminação racial, escreve ainda inspiradamente o Professor Doutor Paulo
Otero, “é profundamente contrária aos postulados cristãos: há uma
incompatibilidade axiológica entre cristianismo e racismo – nenhum cristão pode
ser racista e nenhum racista se pode dizer cristão”. O racismo é anti-civilização,
anti-humano e constitui um enorme perigo para a Humanidade. Por isso, precisa
vigorosamente de ser combatido por todos os homens e mulheres de “boa
vontade” com as armas da justiça, da moderação, da tolerância, da igualdade
e da humanidade.
E
mais, não temos uma visão minimalista sobre o racismo. Não somos daquelas
pessoas que entendem que ele é exclusivamente dos brancos para com as demais etnias
humanas, inclusive ilibando os negros do racismo. Não, não temos este redutor
entendimento. O racismo é um cancro transversal à natureza humana, infelizmente.
Há racismo do branco para com o negro e vice-versa. Também, paradoxalmente, há
racismo entre o branco para com o branco, bem como do negro para com o negro. Tal
como formula Tocqueville, na mesma esteira do pensamento para vincar esta inequívoca
verdade antropológica, “há um preconceito natural que leva o homem a
desprezar aquele foi seu inferior ainda muito depois de este se tornar seu
igual; à desigualdade real criada pela fortuna ou pela lei sucede sempre uma
desigualdade imaginária com raízes nos costumes”[11].
Só que, em abono da verdade, os negros acabaram por sofrer mais com os seus
perniciosos efeitos comparativamente às pessoas de outras etnias.
Os
afro-americanos e os negros em geral para realmente se libertarem do leviatã do
racismo – tanto estatal como social e/ou individual – precisam de continuar a
apostar seriamente na educação e qualificação para, deste modo, chegarem à
proeminência nos círculos da sua convivência diária. Serem bons cidadãos, bons
estudantes e académicos. Bons profissionais e, acima de tudo, “bons samaritanos”.
Procurar sempre a excelência naquilo que estão a fazer ou são incumbidos a
fazer. Este é o antidoto mais eficaz para vencer o racismo.
Não
obstante estas salutares virtudes que os negros devem impreterivelmente
encarnar para derrotar o racismo, é também extremamente importante a afirmação
de África no panorama mundial. A começar, desde logo, no âmbito
económico-financeiro, científico, cultural, social, desportivo, etc., e
consequentemente ganhando influência internacional. Isto porque o racismo
normalmente ataca os alicerces da vítima, indo para o âmago da sua origem, identidade
e raça. E a “autêntica” identidade de todos os afros espalhados pelo
mundo fora é a África. Por isso, independentemente do estatuto social de
qualquer afro ou africano na sociedade em que ele está inserido, ele vai continuar
sempre a ser objecto de preconceito, discriminação, racismo, uma vez que será
sempre, em última instância, associado a marginalizada África. E tal como
sabemos, a forma como África e os africanos são vistos no mundo fica muito
aquém daquilo que deveria ser. É um continente desprestigiado a todos os
níveis, bem como o menos desenvolvido quando comparado com os seus congéneres.
Tem as maiores carências económico-financeiras, o que por sua vez vai atraindo
toda a sorte de calamidades sociais, nomeadamente o baixo índice de
desenvolvimento humano, a malária, a cólera, o VIH, a exclusão social, a
exorbitante taxa de analfabetismo, a baixa esperança média de vida dos seus
habitantes, a elevada taxa de mortalidade materno-infantil e adulta, o
narcotráfico e o sistema corrupto e autoritário que vigora na generalidade dos
seus estados membros, o que se traduz em tremendas violações dos Direitos
Humanos (LER). Logo, tudo isto, potencia o preconceito, o estereótipo, a desconsideração, o estigma
e a discriminação negativa para qualquer africano ou afro no mundo[12].
Logo, o “balão de oxigénio” para aplacar a discriminação e o racismo
contra os negros passa, também, por esta via, na afirmação e dignificação do
continente africano na arena internacional. Tal proeza fará com que a África e os
afros sejam vistos de maneira completamente diferente e bastante positiva por
outras etnias.
De
qualquer das maneiras, apesar do retrocesso abismal do continente africano e da
pobreza que incorpora e grassa no seu seio, nada justifica qualquer tipo de
acto de racismo contra os africanos ou afros ou qualquer outro tipo de etnia. O
racismo é puramente estupidez e uma ofensa contra a criação de Deus, uma vez
que somos todos feitos à imagem e semelhança Dele (Génesis 1:27).
A
democracia nos Estados Unidos da América (EUA), em suma, é toda ela construída
com base no preconceito, na discriminação, no abuso, na escravatura e no
derramamento de sangue. Está fundamentado, acima de tudo, na supremacia dos
brancos em relação aos afro-americanos. Por isso, falta ainda aos Estados
Unidos da América (EUA), apropriando-nos das sugestivas palavras do Presidente Nelson
Mandela, um longo caminho para a liberdade. É um verdadeiro sonho que ainda fica
por realizar, na inspirada formulação do Activista dos Direitos Humanos Martin
Luther King Jr.[13]. Um sonho, sem dúvida, que ainda fica por
realizar…
[1] Cfr.
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, Principia,
Estoril, 2007, p. 368.
[2] Cfr.
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, p. 391.
[3] Cfr.
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, 368.
[4] Cfr.
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, 369.
[5] Cfr.
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, 370.
[6] Cfr.
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, 370.
[7] Cfr.
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, 371.
[8] Cfr.
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, 393.
[9] Cfr.
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, 393.
[10] Cfr.
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, Almedina,
Coimbra, 2007, p. 97.
[11] Cfr.
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, 392.
[12] Sobre a
racialização da pobreza Eduardo Vera-Cruz Pinto, Curso Livre de Ética e
Filosofia do Direito, Princípia, Cascais, p. 435 ss.
[13] Frase extraída
no último discurso de Martin Luther King Jr. no dia 3 de Abril de 1968, tendo
sido assassinado no dia seguinte, citado na sua Autobiografia Eu Tenho Um
Sonho, Bizâncio, 2003, p. 389 ss.