O livre-arbítrio é um termo bastante riquíssimo nos
seus múltiplos significados etimológicos, filosóficos e teológicos que atraiu
ao longo dos séculos. Talvez seja por esta razão que tem despertado o interesse
dos grandes pensadores que marcaram profundamente a nossa História Universal. O
debate sobre as implicações práticas do termo começou precisamente
com Santo Agostinho de Hipona e demais filósofos coevos. Ganhou
posteriormente mais relevo e projecção mediática com o Protestantismo do Séc.
XVI e no pensamento escolástico de Guilherme de Ockham. Este, por sua
vez, tal como dizia um ilustre desconhecido, “santificava” completamente
a vontade humana e a liberdade individual em detrimento de qualquer tipo de
realidade subjacentes ao ser humano. Com os moralistas do séc. XVII e XVIII
tudo ficou diferente. O livre-arbítrio passou a ser objecto de rigorosa
avaliação não apenas por aquilo que representa do ponto de vista
humano-filosófico, mas também pelo fim que visa atingir em termos práticos e
como este é atingido. É no âmbito destas maleáveis construções doutrinarias e dogmáticas
que surgiu Immanuel Kant que veio relançar decisivamente o debate, rejeitando
a priori a ênfase perfeccionista do conceito. Para Kant “a
boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para
alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é em
si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito muito
mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito
de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as
inclinações”[1]. Vai, com efeito, nesta ordem de
ideias, traçar o conceito do “dever ser” como a única máxima
de todo o conteúdo moral, concluindo peremptoriamente que qualquer acção que
não seja revestida do “imperativo categórico” não passa de uma
intenção meramente egoísta, desprovida de qualquer significado valorativo do
ponto de vista humano-social.
Da nossa parte, não se pode falar do livre-arbítrio
sem primeiramente falar da liberdade, do voluntarismo e da autodeterminação. E
falar destes três conceitos concomitantemente torna o problema ainda mais
complexo e de difícil posicionamento, uma vez que envolve vários mistérios que,
as mais das vezes, não conseguimos penetrar e, muito menos, decifrar na
íntegra. Do livre-arbítrio e auto-determinação do Homem pode-se esperar tudo.
Desde a aparente encarnação de excelentes virtudes morais, que consubstanciam
as práticas de boas obras, até aos actos individualistas que visam unicamente
mera auto-promoção, ou até mesmo, em circunstâncias anormais, de actos bárbaros
contra o próximo e a Humanidade em geral.
Confessamos publicamente aqui que somos bastante
cépticos em relação à boa vontade humana. Não acreditamos minimamente nela, ou
seja, na sua impoluta moralidade, razão pela qual nos identificamos plenamente
com a concepção Calvinista da “depravação total” do Homem, que
posteriormente veio a ser acolhida pelo excomungado Bispo de Ypres, Cornelius
Jansen, conhecido doutrinalmente pelo “Jansenismo”, que consiste na
limitação e impossibilidade do Homem só por si ter suficientes capacidades de
praticar o bem na sua imaculada essência. Somente beneficiando da Graça
Redentora de DEUS, através da morte expiatória do Senhor Jesus Cristo na Cruz
do Calvário, que o Homem tem a faculdade plena de poder praticar o
bem. Por isso, seguindo a mesma esteira do pensamento, o Monargismo vai
sustentar que a regeneração espiritual dos Homens depende exclusivamente do
Espírito Santo, independentemente da boa vontade humana, diferentemente das
teses do Sinergismo que faz a apologia da liberdade individual, defendendo que
o Homem tem participação na obtenção da sua salvação e da graça Divina, através
do Livre-arbítrio (um entendimento que é amplamente abraçado pelos círculos
pentecostais e neo-pentecostais, através da influência teológica da corrente
arminiana).
O livre-arbítrio do Homem está inteiramente manchado
pelo pecado original de Adão e Eva no início da criação no jardim do Éden (LER), levando-o a ficar bastante aquém do
ideal da sua boa vontade. Se avaliarmos, cuidadosamente, ao ínfimo pormenor,
todas as acções do Homem logo chegaremos à sábia conclusão de que ela está
sempre viciada de egoísmo, contrapartidas, ganância, calculismo, hipocrisia,
vaidade, auto-promoção, etc., sem prejuízo, obviamente, de se ter em conta
nesta análise os pressupostos valorativos que as sociedades convencionam e
traçam como o “modelo ideal” de “acções legítimas” a
seguir nos relacionamentos com os terceiros.
O livre-arbítrio do Homem, em suma, é completamente
condicionado e submetido à manifesta vontade Divina. Não acreditamos na
suficiência dele ao ponto de proporcionar ao Homem a libertação soteriológica,
visto que está maculado, insistimos, tal como supra sustentamos. É
nestas indubitáveis formulações que entendemos e desenvolvemos a liberdade
individual de cada ser humano, independentemente da sua raça, condição de vida
ou estatuto social que vai ostentando na sua convivência diária (LER).
[1] Immanuel
Kant, In Fundamentação da Metafisica dos Costumes, p. 23, Edições 70, Lisboa,
Portugal, 2005.